Quão longe estamos de produzir nossos remédios no Brasil?

Por Tiago Couto

A crise atual evidenciou os problemas que a dependência internacional do complexo industrial da saúde pode causar. Em recente artigo no A Terceira Margem, Eliane Araújo e Samuel Peres demonstram de forma clara essa dependência ao analisar a balança comercial brasileira para o setor, com importações e déficits crescentes. Também apontam as relações desta dependência com os problemas para o enfrentamento da crise, como a falta de instrumentos de teste e respiradores mecânicos, entre outros. Enquanto estes exemplos estão relacionados à indústria de produção de instrumentos para uso médico hospitalares, de precisão, teste e controle, o que podemos esperar de dificuldades futuras (e próximas!) como o desenvolvimento e/ou produção de produtos farmacêuticos? É sobre o panorama e a importância da indústria farmacêutica nacional que este artigo irá abordar.

O desenvolvimento da indústria farmacêutica nacional pode trazer benefícios tanto ao sistema de saúde quanto para o desenvolvimento econômico e tecnológico nacional. É um passo necessário para assegurar a autossuficiência na produção e a consequente redução da dependência em insumos importados. É vital para assegurar acesso aos remédios essenciais. E por fim, crucial para se avançar na produção tecnológica, de conhecimento e na capacidade inovativa do país, tão importantes ao processo de desenvolvimento econômico. Mas se há tantos benefícios envolvidos, por que ainda estamos atrasados?

A dificuldade começa pela necessidade de passarmos por um processo de alcançamento tecnológico e de competitividade que é extremamente complexo e depende de uma diversa gama de atores como empresários, universidades, instituições públicas e privadas, além de uma coordenação e estratégia Estatal. O caso da indústria farmacêutica é ainda mais difícil, pois é um setor extremamente competitivo e dependente de amplos investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D). Há forte presença de corporações multinacionais no país, altamente competitivas e inovadoras, que produzem grande parte dos produtos originais – Fármacos (princípio ativo) – e protegidas por leis de Propriedade Intelectual (com as Patentes tendo validade de 20 anos). Já a alta necessidade em P&D afasta o investidor privado, uma vez que é caracterizado por envolver investimentos altos e de longo prazo, além de conter elevada incerteza ao longo do período de maturação.

Após a constituição de 1988, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) impulsionou a demanda por produtos farmacêuticos, ao passo que a liberalização econômica da década de 1990 possibilitou um forte processo de desnacionalização e intensificação da participação das empresas multinacionais no país. O período também contou com algumas inovações institucionais, como a entrada do Brasil no acordo TRIPS (Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), a criação da ANVISA e de uma legislação sobre medicamentos genéricos, modernizando as normas para produção e comercialização de produtos sem patente no país. Neste período, se por um lado políticas regulatórias foram estabelecidas sem a devida consulta da associação médica, por outro, a política de acesso universal à saúde não foi coordenada com a produção local [1]. Neste contexto, o Brasil estava produzindo prevalentemente genéricos, enquanto as corporações multinacionais produziam os produtos inovativos. Contudo, o período não foi de todo negativo para a indústria nacional, uma vez que estas regulações também impulsionaram o investimento no desenvolvimento de capacidades internas.

A década de 2000 representou uma virada importante em termos de coordenação entre a política sanitária e a política industrial voltada para o setor farmacêutico. Especificamente, isto ocorre com a criação, em 2003, tanto da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) quanto do programa PROFARMA vinculado ao BNDES. De 2004 a 2014, não só a participação das empresas nacionais saltou de 33% para mais de 55% do varejo farmacêutico, como houve considerável aumento do investimento em P&D no setor, passando de 0,7% para 2,2% da receita líquida de vendas de 2005 a 2014 [2]. Cifra considerável se avaliarmos a média da indústria de transformação que era de 0,7% no mesmo período [3].  A tática se baseou em utilizar as compras públicas estrategicamente, principalmente através da exigência de transferência tecnológica, fortalecer a capacidade de produzir Fármacos, providenciar apoio financeiro para modernização e desenvolvimento das capacidades tecnológicas no setor e, por fim, criar políticas regulatórias que incentivaram o desenvolvimento de capacidades produtivas.

O Ministério da Saúde com a SCTIE, elaborou o plano de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP) que condicionava a compra de produtos de empresas multinacionais a transferência de tecnologias, promoveu um ganho de expertise na produção de genéricos (através da engenharia reversa) – a partir da colaboração entre laboratórios estatais e produtores locais, e estimulou o setor biotecnológico (subsetor mais promissor da indústria farmacêutica no mundo). Desta forma, o plano, além de estimular a produção e inovação local, responde às vulnerabilidades do SUS, pois os produtos do PDP eram considerados estratégicos para o sistema nacional de saúde. Em consonância ao PDP, O BNDES incluiu o setor farmacêutico entre os setores estratégicos, garantindo amplo acesso a financiamento e ajudando empresas a se adaptarem às mudanças institucionais e melhorarem sua capacidade produtiva e tecnológica.

A produção de manufaturados farmacêuticos envolvem três operações principais associadas à capacidades diferente em termos de tecnologia, que são, em ordem crescente [4]: a) Processar e ‘embalar’ os ingredientes básicos em um formato consumível (por exemplo em cápsulas); b) produção de remédios contendo a molécula terapêutica em formato líquido ou sólido, e c) a produção do componente principal dos remédios (API – Active Farmaceutic Ingredientes). O desenvolvimento da indústria farmacêutica significa ter capacidade produtiva nas três operações, em especial na última. Esta, por sua vez, é a que demanda maior investimento em P&D e capacidade inovativa, e por isso, é a mais difícil de se alcançar. Apesar de grandes esforços financeiros, estratégicos e de coordenação, o país ainda tem um longo percurso a percorrer para chegar à autossuficiência e competitividade neste tipo de operação. 

A descontinuidade de políticas públicas e a falta de visão de longo prazo, particularmente em torno da variável de poder de compra e financiamento do setor público, acabaria com a oportunidade de empresas brasileiras produzirem bens diferenciados, para além dos genéricos, bem como com a capacidade de P&D nacional. Permaneceria o problema do déficit elevado, pois sem P&D, as inovações e os produtos originais continuaram a ser importados. Não obstante, dificultariam a autossuficiência produtiva e a capacidade de assegurar acesso a remédios essenciais. O contexto de crise nos permite refletir onde as políticas que escolhemos nos trouxeram e quais serão as estratégias para os próximos passo. Nesse sentido, este artigo buscou sublinhar a importância deste debate que quer esclarecer três questões interrelacionadas: Qual sistema de saúde buscamos para o nosso país? Como a indústria farmacêutica local pode ajudar neste objetivo? E qual a melhor estratégia para alcançá-lo?

Referências:

[1] FONSECA, E. M. DA. How can a policy foster local pharmaceutical production and still protect public health? Lessons from the health–industry complex in Brazil. Global Public Health, v. 13, n. 4, p. 489–502, 3 abr. 2018.

[2] REIS, Carla et al. Panoramas setoriais 2030: indústria farmacêutica. In: Panoramas setoriais 2030: desafios e oportunidades para o Brasil. Rio de Janeiro: Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, 2017. p. [137]-146.

[3] IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa de inovação: 2014. Rio de Janeiro: IBGE, 2016. Disponível em:

[4] GUENNIF, S.; RAMANI, S. V. Explaining divergence in catching-up in pharma between India and Brazil using the NSI framework. Research Policy, v. 41, n. 2, p. 430–441, 1 mar. 2012.

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