Amanhã vai ser outro dia: o desafio da dívida pública e as ideias de contrapartida

Por João Villaverde

Tempos excepcionais demandam medidas excepcionais. O setor público entra em campo pesadamente para garantir a travessia enquanto famílias estão em casa e empresas de setores não essenciais estão fechadas, todos protegendo uns aos outros do contágio de um vírus letal, dando tempo para os hospitais se organizarem para tratar quem desenvolve sintomas graves enquanto pesquisadores trabalham em uma vacina. Em casa, mas com boletos ainda circulando, famílias e empresas precisam do apoio do governo para garantir renda e faturamento mínimo.

É assim em todos os continentes. Não se trata de uma crise de demanda clássica, como a Grande Depressão (1929-1933) ou a Grande Recessão (2008-2012), desatadas por turbulências financeiras. O que vivemos agora, a pandemia, afeta tanto a demanda quanto a oferta e não há estímulo que faça com que famílias simplesmente decidam se arriscar desnecessariamente para sair às ruas e gastar ou empresas decidam abrir. O vírus é real (a despeito do que diz a extrema direita) e, enquanto não existir uma vacina, as políticas públicas devem oferecer um colchão, o conforto mínimo necessário para que todos atravessemos este período com segurança.

Diferentes governos mundo afora, de esquerda e direita, abriram seus arsenais de política econômica justamente com este entendimento. Da Austrália de Scott Morrison à Alemanha de Angela Merkel, passando pela Itália (comandada pela direita) e pela Espanha (comandada pela esquerda), em todos os continentes. É claro que o grau de resposta varia de acordo com as circunstâncias fiscais, monetárias e, também, legais-constitucionais, de cada território.

No caso brasileiro, como sempre, há uma jabuticaba. Por aqui, o presidente decidiu apostar na história de que o novo coronavírus é uma “gripezinha”, adotando variações em torno disso (do jejum para combater o vírus ao slogan “O Brasil Não Pode Parar”).

A primeira resposta do governo federal, no campo econômico, foi muito inadequada, para dizer o mínimo. Cinco dias depois da OMS declarar estado de pandemia e quando praticamente o mundo todo estava já em shutdown (incluindo os estados de São Paulo e Rio de Janeiro!), o governo Bolsonaro declarou por meio de seu ministério da Economia que o PIB de 2020 cresceria até 2,5% “apesar da pandemia”. Ainda neste diapasão, completamente desconectado da realidade prática global e nacional, o governo anunciou em 16/03 o seu primeiro pacote de combate ao COVID-19, que incluía entre as três medidas estruturais a… privatização da Eletrobras (quem, em meio ao derretimento global, compraria a estatal brasileira de energia elétrica? E se comprasse, que preço toparia pagar?)

Ficou claro aos governadores e prefeitos que eles estavam sozinhos na complexa missão de fazer frente aos gastos extraordinários com saúde – de esforço de guerra para levantar novos leitos a equipar hospitais e preparar médicos e enfermeiros.

Como desde 1997, governadores e prefeitos estão proibidos de levantar dívida por conta própria (medida que consideramos salutar, frise-se), o setor público sub-nacional pode apenas gastar o que arrecada ou o que há de reserva financeira no caixa. Dado que a arrecadação mergulha, justamente como consequência do correto shutdown, há uma sinuca instalada.

É preciso ter clareza aqui antes de seguirmos adiante. Os Estados e municípios estão com gastos extraordinários desde março, que continuarão elevados até, pelo menos, o início do segundo semestre, e ao mesmo tempo, suas receitas caíram dramaticamente. Essa conta não fecha. Governadores e prefeitos precisam de ajuda federal urgente. Essa ajuda pode vir de diversas formas, boas e ruins. Agora vamos nos concentrar neste ponto.

É consenso que o endividamento do setor público vai crescer. A estimativa da Instituição Fiscal Independente (IFI) aponta para a dívida pública bruta saltará dos 75,9% do PIB em dezembro de 2019 para 84,8% no fim de 2020. O risco, aqui, é que a dívida termine com um valor ainda maior dado que o denominador (o PIB) tende a cair muito fortemente. Vamos, então, ter em mente que a dívida pública bruta caminhe para fechar 2020 em algo entre 85% e 90% do PIB.

Antes de mais nada, precisamos encarar que este salto extraordinário do endividamento público, que pode ser da ordem de até quinze pontos percentuais (como proporção do PIB) em apenas um ano, não é uma tragédia brasileira. O que ocorre agora é completamente distinto do que o que aconteceu entre maio de 2014 e maio de 2017, quando a dívida pública bruta saltou quase vinte pontos percentuais, como proporção do PIB, mas essencialmente por fatores endógenos.

Agora, 2020, não. O aumento da dívida ocorrerá por uma consequência direta de um choque global de grandes proporções. A dívida pública de praticamente todos os países experimentará um aumento expressivo em 2020 frente a 2019. É importante ter isso em mente (estamos todos no mesmo barco!) porque se ignorarmos o mundo e ficarmos apenas com o Brasil em mente, entraremos em uma espiral suicida de provocar um agudo ajuste fiscal já no primeiro ano de estabilização.

Um ajuste pós-crise será necessário e inevitável. Mas ele não pode ser concentrado em um ou dois anos. Ele precisa ser diluído no tempo. Aliás, há, neste exato momento, chances reais de criarmos incentivos inteligentes para o ajuste do pós-crise ser mais leve e esperto, em vez de duro e tosco.

Vejamos alguns exemplos práticos e, em seguida, vamos passar para sugestões.

A Câmara dos Deputados debatia um perigoso projeto que permitiria aos Estados e municípios se endividarem novamente. Isso seria permitido inclusive aos Estados em situação fiscal explosiva, como Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Norte. Seria um aumento de passivo regional que seria, claro, nacionalizado na medida em que esses entes não teriam capacidade de gerar receita futura para fazer frente aos pagamentos, dado que já hoje não conseguem pagar tempestivamente suas despesas obrigatórias tal como estão. Perderíamos transparência e controle. Apostar que os Tribunais de Contas Estaduais (TCEs), que deixaram seus Estados explodirem gastos fixos (inclusive com folha de pagamento dos próprios TCEs, diga-se) em detrimento daqueles de maior multiplicador (como os investimentos públicos), quer dizer, apostar que agora os TCEs fariam o acompanhamento com qualidade, é apostar no escuro.

Essa ideia foi abandonada, por enquanto. A Câmara aprovou dias atrás (em 15/04) uma versão diferente do projeto de ajuda aos Estados e municípios, o PLP149/20. Ainda assim, ele deveria melhorar muito. Pelo projeto, que agora está no Senado, a União terá de pagar pela diferença de arrecadação do ICMS e ISS entre março e setembro de 2020 frente ao que foi arrecadado entre março e setembro de 2019. Trata-se de uma conta estranha por conta dos incentivos negativos do “pendura”: diante do quadro difícil, entes subnacionais podem ser impelidos a conceder diferimentos não-relacionados ao combate a pandemia, além de subsídios, apenas para conseguir levantar dinheiro junto à União. Ganharia duas vezes (dá o desconto e ainda recebe arrecadação).

Há caminhos muito melhores. Mas vamos ficar com uma proposta mínima, partindo do pressuposto que o projeto não mudará em seu mérito. Seria, então, salutar exigir contrapartidas. Uma importante contrapartida seria a apresentação, por cada um dos 26 Estados + DF, de seus gastos totais, mensais, com folha de pagamentos de servidores (separados por Poderes) e a folha de inativos (igualmente dividida por Poderes), seguindo marcos do Tesouro Nacional.

Essas informações fiscais dos entes subnacionais existe, mas a padronização, a transparência e a velocidade na divulgação podem melhorar.

Isso permitiria ao cidadão brasileiro, onde quer que ele ou ela viva, saber quanto e como seu governo local gasta o dinheiro público. Além de uma informação importante, de cidadania fiscal, ela também permitiria uma comparação importante neste período de crise aguda.

A destruição de empregos e salários no setor privado é rápida e, lamentavelmente, tende a aumentar neste segundo trimestre. Aliás, a taxa de desemprego já era muito elevada mesmo antes do impacto do COVID-19 na economia brasileira. É salutar ter em mente também que os gastos discricionários com investimentos públicos eram cortados ano a ano pelos mais diversos governadores enquanto comprometiam sua política de gastos com despesas crescentes e engessadas com salários já desde 2012. Boa parte dos recursos repassados pelo BNDES aos Estados entre 2012 e 2013 foi desviado para salários, em vez de investimentos (vale a leitura do capítulo de Pedro Jucá Maciel em “Finanças Públicas”, de Salto/Almeida, 2016).

É difícil fazer uma reforma que torne o Estado mais aderente ao século XXI em meio a uma pandemia e não é isso o que propomos aqui. Mas nos parece urgente 1) estabelecer contrapartidas para o dinheiro que será entregue pela União aos governadores e prefeitos dado que, inevitavelmente, o pagamento será nacionalizado; 2) ampliar a transparência sobre os gastos públicos, permitindo maior controle social. Parece claro, a todo cidadão, o esforço hercúleo que servidores da Saúde fazem no presente, como professores que, hoje, buscam alternativas heroicas para retomar o fluxo de aulas em situação de distanciamento social em localidades já carentes. Seria de bom tom comparar com os gastos fixos com, por exemplo, o Judiciário e o Ministério Público, que, salvo exceções, convivem em emaranhado de penduricalhos.

Direto e reto, é o seguinte: A dívida pública vai aumentar, mas em termos relativos, isso não é problemático como foi o que ocorreu entre 2014 e 2017. O governo federal claramente não entendeu a extensão da crise (para não citar o presidente que atua contra a racionalidade – o que não surpreende, dado seu histórico deletério como parlamentar). Governadores e prefeitos, e seus funcionários (especialmente na Saúde, mas também na Educação e áreas sociais), estão sob imensa pressão. Precisam de ajuda urgente e rápida da União. Dado que a ajuda virá, por esforço do Congresso Nacional, que seja então associada a contrapartidas inteligentes. É bom lembrar que depois deste duro e difícil 2020 chegará 2021.

*João Villaverde é doutorando em Administração Pública e Governo na FGV-SP. Foi pesquisador visitante na Universidade de Columbia (Nova York) e é autor do livro “Perigosas Pedaladas: os bastidores da crise que abalou o Brasil e levou ao fim o governo Dilma Rousseff” (Geração, 2016).

**A foto é de Victor Moriyama.

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