Temos mais meios disponíveis para o enfrentamento da crise via PEC 10/2020: empreguemos

Por Fábio Terra

O Congresso Nacional tem demonstrado muita boa vontade em criar meios para o Brasil enfrentar os efeitos da dupla crise que atravessa, de saúde pública e econômica. É mérito exclusivo do Congresso a renda básica emergencial e, nos próximos dias, a promulgação da PEC 10/2020, chamada de PEC do Orçamento de Guerra, que institui o necessário “Regime Extraordinário Fiscal, Financeiro e de Contratações”.

A PEC traz muitos meios para facilitar as execuções fiscal, financeira e de contratações necessárias para enfrentar a crise do coronavírus e sua mais imediata repercussão: a crise econômica. Por exemplo, com a PEC, pelo tempo em que vigorar o Estado de Calamidade Pública, fica suspensa a Regra de Ouro; empresas com débito no INSS podem ser contratados pelo setor público ou dele receber incentivos; e despesas não permanentes (inclusive renúncia de receita) podem ser criadas mais facilmente.

Além disso, a PEC também dá segurança jurídica para que o Banco Central (BC) compre títulos do Tesouro no mercado secundário (algo hoje permitido, mas de forma mais precária). Assim, o BC poderá oferecer liquidez ao mercado secundário de dívida pública (para o leitor leigo, mercado secundário é como uma revenda de carro usado), ajudando a influenciar os juros de longo prazo. Com esta possibilidade, se, e sempre que houver algum sinal de falta de liquidez (isto é: menos investidores) e os juros de longo prazo subirem, o BC pode atuar (e pode fazê-lo mesmo que os juros não estejam subindo, caso seja interessante reduzir os juros longos).

O BC será permitido, ainda, a comprar uma série de ativos financeiros, evitando crash de instituições financeiras, e inibindo a restrição de crédito e de acesso ao mercado financeiro de, por exemplo, micro, pequenas e médias empresas que estejam enfrentando dificuldades financeiras em meio à crise. Ou seja, o BC está ganhando munição para estabilizar os impactos das ondas de inadimplência que virão, a dificuldade de ativos serem vendidos nos mercados secundários e a possibilidade de os problemas financeiros de uma instituição contaminarem outras, realizando o chamado risco sistêmico.

Importante notar que a PEC traz tanto a necessidade de o BC estabelecer contrapartidas para conceder ajuda quanto uma série de restrições de pagamento de juros sobre capital próprio, bônus, participação nos lucros e afins dos responsáveis pelas instituições socorridas. Isso é desejável, até mesmo para evitar que recurso público se torne ganho privado. A lógica da PEC é a de evitar quebradeira generalizada, não a de dar ganhos.

A PEC não aponta que o Tesouro deve aportar recursos no BC para que ele realize as operações acima. Ou seja, elas serão feitas com o BC usando recursos de seu manejo, sejam oriundos de recolhimentos compulsórios ou sejam por emissão monetária. Talvez será necessário ao Tesouro aportar títulos no BC ao final de todo o processo caso o Banco tenha prejuízo em seu balanço, mas isso é ajuste, resíduo, não condição a priori para a ação do BC. Essa flexibilidade é fundamental para a rápida operação da nossa autoridade monetária. E, toda ação que envolva o sistema financeiro precisa mesmo ser rápida.

Não obstante, a PEC deveria trazer dois outros meios em seu regramento. (1) Ela deveria suspender a eficácia da Lei 13.820/19 para que os resultados da equalização cambial do BC sejam repassados à Conta Única do Tesouro e possam ser usados como recursos próprios da União para enfrentar a crise. Além disso, seria necessário que ela previsse que, ao invés de o resultado ser repassado ao fim dos balanços semestrais do BC, ele pudesse ser imediatamente levado ao Tesouro. Entre janeiro e março de 2020, o resultado da equalização cambial do BC foi de R$ 312 bilhões. É um farto e necessário recurso que precisa se somar aos esforços de combate à crise imediatamente.

(2) Ela poderia também prever, como instrumento de última instância, a permissão para que o BC comprasse títulos do Tesouro em mercado primário, ou seja, financiamento monetário dos gastos da União. Certamente essa ideia causa repugnância em vários dos leitores, que automaticamente acham que emissão de moeda para financiar gasto público causa inflação e que, além disso, nosso Estado não merece confiança e fará uso político da emissão. Pois bem, é difícil lutar contra dogmas, ainda mais em um país com um trauma recente de inflação elevada. Mas essa luta é muito necessária.

Em termos econômicos, em condições normais de temperatura e pressão, emissão de moeda é um erro, gera inflação. Nas condições atuais, contudo, absolutamente fora de normais, com uma depressão em vista, desemprego de pessoas e máquinas, estoques elevados, a emissão de moeda pode ser o meio mais fácil e rápido para que um piso de renda e, logo, demanda, exista, evitando que o fundo do poço econômico seja tão profundo quanto ele será se não houver a ajuda via financiamento monetário do Tesouro pelo BC.

Em termos psicológicos, é natural que nos apeguemos ao convencional quando o inconveniente nos bate à porta. É a reza do ateu diante do medo – ou talvez a crença dos deístas e teístas ao longo da vida. A inconveniência nos bateu à porta agora de uma forma sem precedentes, sob o risco de morte pelo COVID-19 e pelos efeitos perversos da crise econômica. Se nos apegarmos ao conveniente nas medidas econômicas que tomarmos, como ao puro dogma de que emissão de moeda sempre gera inflação, as inconvenientes crises de saúde pública e econômica ocuparão vasto espaço. Nossos dogmas são sempre difíceis de mudar, por isso são tão mais difíceis os impactos que vêm de nossa permanência.  

*Fábio Terra é Professor da UFABC e do PPGE-UFU.

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