COVID-19 e o “pecado original redux”

Por Luiz Fernando de Paula, Barbara Fritz e Daniela Prates

A pandemia do COVID-19 levou a uma forte reversão da terceira onda de fluxos de capitais para as economias emergentes (EMs) na fase de globalização financeira.

Pode-se, grosso modo, identificar três ondas principais desde a década de 1990, quando as EMs passam a se inserir nesta fase: a primeira começa no início e termina no final desta década com uma sequência de crises financeiras e cambiais na América Latina, Leste Asiático e a Rússia; uma segunda onda inicia-se com o novo milênio, terminando com uma parada abrupta em 2008 com a Crise Financeira Global; por fim, desencadeado por políticas agressivas de flexibilização quantitativa por parte dos bancos centrais das economias avançadas, um terceiro ciclo de globalização financeira começa a partir de meados de 2009, com fluxos de capitais cada vez maiores e diversificados, com destaque para o aumento da participação de não-residentes em aplicações (ações e títulos) em moeda local nos mercados domésticos das EMs. A volatilidade inerente a esses fluxos atingiu seu pico nos meses imediatamente após a eclosão da pandemia COVID-19 e sua decorrente crise econômica global.

A alta incerteza relacionada à propagação da pandemia aumentou enormemente os temores sobre o futuro, desencadeando saídas de portfólio sem precedentes de EMs, atingindo primeiro os mercados de ações e, na sequência, os mercados de títulos, resultando em deflação nos preços das ações, um aumento acentuado nos spreads de títulos e abrupta depreciação das moedas domésticas. As saídas líquidas de capitais das EMs somaram US$ 104,8 bilhões durante a crise do COVID-19, mais de três vezes os US$ 33,0 bilhões registrados na Crise Financeira Global, em ambos considerando os 90 dias após o início do evento (Figura 1).

Figura 1. Saídas líquidas de portfólio de economias emergentes selecionadas* – US$ bilhões (esquerda) e taxa de câmbio (US$ / moeda local; 100 = 2 de janeiro 2020), janeiro-agosto de 2020 (direita)

Fonte: Cálculos do Secretariado da UNCTAD com base no banco de dados do IIF (Institute for International Finance),  Daily Emerging Market Portfolio

(*) Países selecionados: África do Sul, Arábia Saudita, Brasil, China, Coréia do Sul, Filipinas, Índia, Indonésia, México, Paquistão, Sri Lanka, Tailândia, Turquia e Vietnã.

No entanto, desde abril de 2020, esse movimento perdeu ímpeto com a recuperação parcial dos influxos de portfólio de capital para as EMs, o que fez com que os preços de muitos ativos retornassem mais perto aos níveis que eram mantidos antes do pânico. Como os bancos centrais das grandes economias avançadas injetaram quantidades sem precedentes de liquidez em suas economias em resposta à crise recente, os investidores globais tiveram pouca escolha a não ser buscar maiores rendimentos nas EMs. Esta retomada nos fluxos de capitais, entretanto, além de perder ímpeto em agosto de 2020, refletindo as incertezas da recuperação econômica em boa parte das EMs, tem sido bastante desigual entre países, favorecendo países com grau de investimento (investment grade) em seus títulos soberanos, tal como China e Coréia do Sul (Wheatley, 2020).

Um importante determinante das saídas de capital recordes de EMs durante a crise COVID-19 é a crescente importância dos fundos orientados por benchmark (benchmark-driven funds), ou fundos passivos. Estes seguem um índice de referência emblemático com uma lista predefinida de países e títulos com pesos específicos (JP Morgan EMBI ou Morgan Stanley’s MSCI) e que são muito mais fortemente influenciados por fatores externos: o comportamento desses fundos tem contribuído sobremaneira para a forte correlação entre as decisões de portfólio dos gestores de ativos durante a crise do COVID-19, reforçando o comportamento de manada dos investidores que é típico de tais circunstâncias. Além disso, como ressalta o relatório da UNCTAD (2020), os fundos ativos também são influenciados por esses benchmarks, pois seus gestores não podem correr o risco de ter um desempenho inferior aos fundos passivos e, como consequência, perder clientes ou mesmo o próprio emprego. Segundo algumas estimativas, cerca de 70% das alocações dos fundos de investimento dedicados às EMs sofrem influência (direta ou indireta) desses índices.

A combinação da crise do COVID-19 e a queda acentuada dos preços do petróleo levaram a uma forte desvalorização cambial nas EMs entre o final de fevereiro e meados/final de março de 2020, em uma tendência que continuou em abril em alguns países como Brasil, África do Sul e a Turquia, mais do que em outros (Figura 1). De fato, a Figura 2 mostra que se considerarmos os fluxos de capitais líquidos de janeiro a julho deste ano para algumas EMs, há uma queda sincronizada nesses países em 2020, sendo, entretanto, maior na Turquia, Polônia e Brasil, pressionando mais fortemente suas respectivas taxas de câmbio. Turquia e Brasil, junto com Índia, México e Colômbia, estão entre as economias mais atingidas pela pandemia.

Figura 2. Fluxos líquidos de capitais externos em países emergentes selecionados (% do PIB).

A maior presença de investidores estrangeiros nos mercados de capitais locais aumentou a transmissão de choques financeiros internacionais para esses mercados, uma vez que os surtos de entrada e saída de não residentes afetam não apenas os preços dos ativos domésticos, mas também as taxas de câmbio. Na verdade, as enormes desvalorizações cambiais têm um forte impacto nas EMs, podendo afetar tanto residentes que tenham acumulado dívidas em moedas estrangeiras, quanto, dependendo do estágio do ciclo econômico, os preços dos produtos comercializáveis em moeda doméstica. Vejamos com mais detalhes esse processo.

Em primeiro lugar, como a maioria das EMs acumulou dívida externa corporativa antes da crise COVID-19, estimulada por custos de empréstimos historicamente baixos e vários incentivos que favorecem o aumento da dívida externa, uma desvalorização cambial mais acentuada, juntamente com uma forte alta dos spreads das dívidas, aumentou os custos para os tomadores de dívidas em moeda estrangeira (OCDE, 2020).

Em segundo lugar, a redução dos preços dos ativos financeiros em termos da moeda local dos investidores estrangeiros acabou por desencadear a venda de ativos financeiros por não-residentes, o que resultou em novas rodadas de saídas de capitais (Hofmann et al., 2020). Este último evento está relacionado ao surgimento de uma nova fonte de vulnerabilidade externa – denominado recentemente de “pecado original restaurado” ou em inglês “original sin redux”.

O novo perfil de passivos externos das EMs detidos por investidores globais – acima referido – cria novos canais de transmissão de choques financeiros e, com isso, uma nova fonte de vulnerabilidade externa, relacionada a presença de investidores estrangeiros em mercados domésticos. Até onde sabemos, esse novo fenômeno tem permanecido bastante despercebido no trabalho acadêmico e na orientação de políticas.

“Pecado original redux” é um termo cunhado por economistas do Bank for International Settlement (BIS) (Carsten e Shin, 2019; Hofmann et al., 2020) para compreender este novo tipo de vulnerabilidade. Os autores enfatizam que, como os investidores estrangeiros têm ativos nas moedas das EMs, mas obrigações com os clientes na moeda de seu país, a depreciação da moeda de uma EM pode desencadear vendas de títulos e ações.

O “pecado original redux” durante o ápice da crise do COVID-19 ajuda a explicar a saída de capitais das EMs nunca vista antes, em termos de volume e velocidade; e também a sua rápida e parcial recuperação, com percurso muito volátil nos meses a seguir. À medida que os investidores internacionais procuraram vender o mais rápido possível os ativos nos mercados financeiros domésticos que estavam com preços em queda, exerceram assim uma pressão ainda mais forte sobre as taxas de câmbio desses países.  Entretanto, quando os preços dos ativos atingiram mínimos recordes, esses investidores com sua fome recuperada por rendimentos voltaram gradual e parcialmente a investir em ativos das EMs denominados tanto em moeda estrangeira quanto doméstica.

Por outro lado, os efeitos do pecado original (original sin), tal como concebido na sua forma original por Eichengreen et al (2002), também aumentaram no período de globalização financeira, devido aos maiores volumes de dívidas e sofisticação financeira. Este conceito destaca a impossibilidade de um país emitir títulos no exterior em sua própria moeda, o que pode gerar um problema de descasamento de moedas no tomador de crédito um fenômeno que foi típico do período de internacionalização financeira quando houve predomínio dos empréstimos externos nos fluxos de capitais nos anos 1970 e 1980, mas que se manteve também na fase de globalização financeira.

Concluindo, o novo padrão de vulnerabilidade externa criou um grau de complexidade sem precedentes, tornando cada vez mais difícil prever ganhos e perdas para os agentes nos mercados globais em períodos de turbulência global. As reações cada vez mais bruscas aos choques externos expuseram as EMs a uma maior volatilidade dos fluxos de capitais e das variações cambiais, com todos os seus conhecidos e danosos efeitos sobre o crescimento econômico.

Referências:

Carstens, A. e Shin, H.S. 2019. ‘Emerging markets aren’t out of the woods yet’. Foreign Affairs, 15 de março.

Eichengreen, B., Hausmann, R.,e Panizza, U., 2002. ‘Original sin: The pain, the mystery and the road to redemption’, paper presented at a conference on Currency and Maturity Matchmaking: Redeeming Debt from Original Sin, Inter-American Development Bank

Hofmann, B., Shim, I.e Shin, H.S. 2020. ‘Emerging market economy exchange rates and local currency bond markets amid the COVID-19 pandemic’, BIS Bulletin no. 5, abril.

OECD 2020. ‘Covid-19 and global capital flows’, available at https://read.oecd-ilibrary.org/view/?ref=134_134881-twep75dnkt&title=COVID-19-and-global-capital-flows

UNCTAD 2020. Trade and Development Report, disponível em: https://unctad.org/en/PublicationsLibrary/tdr2020_en.pdf .

Wheatley, J. 2020. ‘Investors are getting pickier in emerging markets’. Financial Times, 22/09/2020.

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