A “distração” da COVID-19 e a necropolítica ambiental no Brasil

Por André Roncaglia

O Brasil enfrenta uma agitação social em ebulição. Uma crise institucional gera entropia em um sistema social já estressado, repleto de desigualdade, aumentando a pobreza e levando a um número crescente de mortes pelo coronavírus.

Alguns dias atrás, apesar de outra contagem diária de mortes em massa, o país parou para assistir à filmagem de uma reunião ministerial de 22 de abril. A liberação do vídeo foi ordenada pelo STF, em uma investigação sobre uma suposta interferência de Bolsonaro na Polícia Federal para proteger um de seus filhos, atualmente sob investigação.

O vídeo ofende nossas sensibilidades democráticas e é amargo para qualquer gosto cívico. Nada foi discutido sobre a pandemia. A necropolítica é a seiva vital de um governo que prioriza a importação de armas em meio à crise funerária que se vem na esteira da crise sanitária. Mas eu gostaria de salientar uma única intervenção na reunião que fala do aprisionamento do país em sua própria versão do neoliberalismo do tipo “quanto pior melhor” (‘fail-forward’ neoliberalism). Ele revela um governo fixado em desmantelar qualquer parte da regulamentação do Estado e privatizar qualquer empresa estatal disponível.

Philip Mirowski argumentou em seu livro  Never Let a Serious Crisis go to Waste (2013)  que a dissonância cognitiva fomenta o pensamento neoliberal a tal ponto que nenhuma evidência contrária pode abalar as convicções de seus discípulos sobre a “verdade suprema” que esta corrente de ideias representa. Por mais apocalíptica que possa parecer uma crise, sempre há motivos para culpar a intervenção do governo por todos os males que assolam a Terra.

Como apontamos eu e João Romero em outra ocasião, este tipo de movimento não é novidade para o Brasil, mas ganhou força total no governo Bolsonaro. Na reunião ministerial de 22 de abril de 2020, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, instou o presidente a aproveitar a “distração” da crise do COVID-19 para pressionar a desregulamentação do setor. Aqui está sua fala durante a reunião: “Precisamos fazer um esforço enquanto estamos neste momento calmo em termos de cobertura da imprensa, porque eles estão apenas falando sobre a COVID, e pressionar para alterar todas as regras e simplificar as normas”. É a necropolítica aplicada ao meio ambiente.

Como nos relembrou um artigo da Reuters: o desmatamento atingiu no ano passado, “a mais alta taxa em 11 anos e aumentou 55% nos primeiros quatro meses do ano, em comparação com um ano atrás, com ambientalistas culpando as políticas de Bolsonaro”.

Agora, Bolsonaro pede o desenvolvimento da Amazônia por meio da expansão de atividades extrativistas, como garimpo de ouro e diamante, extração de madeira e criação de gado em áreas protegidas, alegando que é necessário tirar as pessoas da pobreza. Trata-se do que chamei de modelo Casa Grande com Cassino no grande fazendão amazônico. Neste modelo, onde passa o boi da desregulação, passará a boiada do extrativismo predatório.

Em resposta ao vídeo, o Ministério do Meio Ambiente afirmou que a desburocratização e simplificação das normas dentro da lei é sua prioridade e que “o emaranhado de leis irracionais dificulta investimentos, geração de empregos e, portanto, desenvolvimento sustentável no Brasil”.

Isso é duplamente alarmante por duas razões que podem já estar claras. Primeiro, revela árida falta de escrúpulos o oportunismo de aproveitar a maior crise sanitária em décadas para promover uma legislação que atenda a grupos de interesses especiais.

Em segundo lugar, a agenda extrativista replica uma compreensão desatualizada e anacrônica do desenvolvimento, tratando-o como mero aumento de renda de curto prazo, com flagrante desconsideração dos custos para todas as partes interessadas, como as comunidades nativas na bacia amazônica, o próprio ambiente, o mundo em geral e as gerações futuras.

Pesquisa recente mostrou que “partes da Amazônia e outras florestas tropicais agora estão emitindo mais CO2 do que absorvem”. Este sombrio desdobramento ainda não foi incorporado aos modelos climáticos e pode jogar as metas de temperatura estabelecidas pelo Acordo de Paris muito além do nosso alcance.

Esta agenda extrativista revela ainda um apego a um modelo tecnológico regressivo, aprisionado em vantagens comparativas estáticas das quais o país deveria se esforçar para escapar e não para abraçá-las como a salvação. A saída da crise deve se voltar para o futuro, onde reside a sofisticação produtiva e tecnológica, bem como ambientalmente sustentável.

O estudo de João Romero (Cedeplar-UFMG) e Camila Gramkow (CEPAL) traz novas evidências de que a complexidade econômica se correlaciona com menor intensidade de gases de efeito estufa (GEE). Usando dados de 67 países entre 1976 e 2012, os resultados indicam que a complexidade econômica pode tornar as baixas emissões de carbono compatíveis com a transformação estrutural.

No livro que escrevi com Paulo Gala (FGV-SP), transmitimos aos leitores que subir a escada tecnológica é a saída da armadilha de renda média do Brasil. Ao incorporar mais complexidade à nossa rápida economia desindustrializante, o Brasil pode dar um salto adiante no futuro, tornando-se uma sociedade que aprende e promovendo uma nova estratégia nacional de crescimento baseada na prosperidade liderada pela tecnologia, ambientalmente sustentável e socialmente inclusiva.

Neste sentido, deixo-lhe uma provocação para reformularmos como enxergamos a nossa vasta riqueza natural. Entendo que a Floresta Amazônica e o Cerrado devem ser vistos como uma imensa biblioteca natural. Ambos fornecem um rico acervo de componentes químicos e agentes biológicos que não precisam ser extraídos de forma predatória com olho em lucro fácil. A tecnologia atual é perfeitamente capaz de reproduzir este acervo original em laboratório sem a necessidade de alterar o ecossistema original. Todo bibliófilo sabe da importância das primeiras edições e a quantidade de informações que elas carregam.

Se esta metáfora for verdadeira, a atual política extrativista está derrubando prateleiras inteiras da biblioteca natural do mundo apenas para manter viva a chama do agronegócio e do extrativismo. Cada hectare de desmatamento significa terabytes de conhecimento perdido. Ademais, este modelo gera deficiências irreparáveis que tornam a humanidade incapaz de lidar com uma maré iminente de crises relacionadas ao clima e à saúde.

Pesquisas vêm mostrando que a Amazônia é um “potão de vírus” e que “quando você gera esse desequilíbrio ecológico, você altera essas cadeias e nessa hora pode acontecer esse pulo do vírus [dos animais para os humanos]”. A elevada biodiversidade pode facilitar o desenvolvimento destes vírus zoonóticos e, nas atuais condições, poderia caracterizar o complexo Amazônico como “o maior repositório de coronavírus do mundo”. Ao refundar a relação da sociedade com estes ricos ecossistemas naturais, podemos transformar esta “ameaça” em um potente aliado contra epidemias futuras.

Contudo, o governo federal brasileiro continua vendo o complexo Amazônia-Cerrado como um reservatório estático de matérias-primas e de recompensas extrativas fáceis. Ignorando abertamente um crescente conjunto de evidências e opondo-se ao movimento global de proteção ao meio ambiente, esta agenda anacrônica de política ambiental desperdiça a rica oportunidade de se aproveitar a interação dinâmica entre tecnologia e recursos naturais. Precisamos de uma política que aspire à vida de todas as espécies que habitam a Terra que não é plana.

Com a sombria convicção obscurantista que lhe caracteriza, em vez de se afastar do penhasco ambiental, este governo pode muito bem dar um passo à frente.

André Roncaglia é professor de economia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e pesquisador associado do CEBRAP. Twitter: @andreroncaglia.

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