Por João P. Romero, Professor do Cedeplar-UFMG.
A capa da Folha de São Paulo (FSP) do dia 10 de outubro estampou uma manchete que afirmava que o “Brasil é o que mais expande gasto público numa década”. Usando dados do Fundo Monetário Internacional (FMI) para um grupo de 20 países escolhidos pela reportagem, o Brasil seria o país com maior expansão do gasto entre 2008 e 2018, com uma variação de espantosos 10,4 pontos percentuais do PIB. Acontece, porém, que os dados apresentados na reportagem continham dois importantes erros: desconsideraram uma mudança metodológica nos dados em 2010 e utilizaram dados de gastos que não incluem o investimento líquido. Além disso, um outro problema da reportagem foi analisar somente a proporção Gasto/PIB, sem observar separadamente o que aconteceu com o numerador e o denominador da relação.
Em primeiro lugar, conforme apontou o economista Pedro Rossi, professor da Unicamp, embora a reportagem falasse de Gasto Primário, foi utilizado na verdade um dado diferente. Para calcular o Gasto Primário a partir dos dados do FMI, é preciso utilizar o dado de “Expenditure”, subtraindo dele o pagamento de juros. Contudo, o dado usado pela FSP foi o de “Expense”, que é o dado de “Expenditure” subtraindo o investimento líquido.
A exclusão do investimento líquido, ao considerar equivocadamente a série de “Expense” ao invés de “Expenditure”, acaba reduzindo consideravelmente o nível inicial do gasto em 2008, quando o investimento líquido era elevado.
Esse erro reduziu em 2,6 pontos percentuais do PIB o gasto do Brasil em 2008 (diferença entre as linhas laranja e azul do gráfico). Em função do baixo investimento líquido dos últimos anos, o valor final das duas séries se torna ínfimo. Ao desconsiderar o investimento líquido, portanto, a FSP acabou inflando o crescimento do gasto brasileiro. Se tivesse uado o dado correto a variação do Gasto Primário entre 2008-2018 cairia de 10,4 para 7,6 pontos percentuais.
Em segundo lugar, um problema ainda mais grave não observado pela FSP foram as mudanças metodológicas no cálculo das despesas do governo pelo Tesouro Nacional a partir de 2010, quando operações intraorçamentárias passaram a ser incluídas nas despesas e também nas receitas.
É bastante claro o salto das séries de gastos do FMI entre 2009 e 2010, por não considerarem a mudança metodológica de 2010. Em um estudo de 2017, os economistas do IPEA, Sérgio Gobetti e Rodrigo Orair, calcularam o gasto primário ajustando para esses e outros problemas nas contas públicas para o período de 2002 a 2015.
Comparando a série de “Gasto Primário” da FSP (azul) com a série de Gasto Primário Ajustado (verde), calculado por Gobetti e Orair, vemos que esse equívoco sozinho cria uma diferença de 1,8 pontos percentuais do PIB entre as duas séries no ano de 2010.
Gráfico 1 – Gasto público em relação ao PIB (2008-2015)
Numa segunda reportagem, publicada no dia 15 de outubro1, a FSP assumiu o segundo erro. Considerando o período 2010-2018 para evitar a mudança metodológica, apontaram que a variação da relação Gasto/PIB (azul) cai para 6,3 pontos percentuais, mas continua sendo a 2ª maior.
Contudo, utilizar os dados depois de 2010 não resolve completamente o problema, pois os gastos brasileiros continuam inflados pela incorporação das operações intraorçamentários dentro das despesas, mas que serão anuladas por serem inseridas também nas receitas.
Além disso, nessa segunda reportagem foi novamente usada a forma equivocada de cálculo do Gasto Primário, usando “Expense” ao invés de “Expenditure”.
Mesmo usando os dados do FMI, e não de Gobetti e Orair, se considerarmos somente a variação do gasto primário calculado da forma correto (laranja), a variação cai para 4,7 pontos percentuais do PIB entre 2010-2018.
O Gráfico 2 traz os dados dos 19 países analisados pela FSP, excluindo somente a Arábia Saudita, que tem dados apenas para 2018. Com os dados corretos de gasto primário para 2010-2018, o Brasil se mantém com a 2ª maior variação.
Contudo, a comparação da proporção de gastos entre países deve ser feita considerando os serviços públicos disponibilizados para a população. Faz pouco sentido comparar a proporção de gastos do Brasil à dos Estados Unidos, por exemplo, se aqui contamos com o Serviço Único de Saúde (SUS), enquanto nos Estados Unidos não há provisão de serviços de saúde pública. O mesmo vale para a maioria dos países subdesenvolvidos.
Gráfico 2 – Variação da relação Gasto Primário/PIB (2010-2018)
Só faz sentido comparar a proporção brasileira de gastos em relação ao PIB com países que oferecem serviços públicos semelhantes, como saúde pública, educação pública (inclusive superior), previdência pública, etc. Nesse caso, a comparação mais adequada é com países europeus, por exemplo, apesar da diferença de renda per capita.
Nessa comparação, considerando os 5 países europeus da amostra, nosso percentual de gastos fica abaixo da sua média, de 43,6%.
Ademais, é importante observar também que o Brasil ficou apenas em 12º em termos de gasto primário per capita nessa lista de países, como mostrado no Gráfico 3. Em outras palavras, apesar da relação Gasto/PIB elevada, ainda gastamos muito pouco por habitante.
Gráfico 3 – Gasto Primário/PIB e Gasto Primário per capita (2018)
Para entender melhor o que aconteceu com a relação Gasto Primário/PIB no Brasil durante a última década, porém, é fundamental averiguar os movimentos do numerador e do denominador da relação separadamente. Essa divisão é apresentada no Gráfico 4.
Ao analisar a variação percentual do Gasto Primário real (descontando a inflação), constata-se que nesse período o Brasil teve apenas a 9ª maior variação. Essa variação foi de 16,1% nesses 9 anos, só 1,2 pontos percentuais acima da variação média da amostra.
A análise da variação percentual do PIB real, por outro lado, deixa claro que a principal razão para o Brasil apresentar elevada variações da relação Gasto Primário/PIB na última década foi o baixo crescimento do PIB.
Entre 2010 e 2018 o Brasil teve a segunda menor variação percentual do PIB. Entre os 19 países considerados, ficou em 18º! Enquanto a variação média do PIB dos países da amostra foi de 16,9%, a variação percentual do PIB brasileiro foi de ínfimos 4,8%, ficando 12,1 pontos percentuais abaixo da média.
A análise separada das variações do gasto e do PIB mostra que o baixíssimo crescimento do PIB brasileiro na última década é a principal explicação para o aumento da relação Gasto Primário/PIB acima da média dos países analisados. Esse péssimo desempenho do Brasil em termos de crescimento do PIB é explicado pela forte crise de 2015-16 e pela lenta recuperação que se seguiu.
Gráfico 4 – Variação percentual do Gasto Primário e do PIB (2010-2018)
O exemplo da Turquia ilustra bem a importância de observar as variações tanto do gasto como do PIB.
A Turquia, que tinha em 2010 um PIB per capita de 10,7 mil dólares (a preços de 2010), semelhante ao brasileiro, de 11,3 mil dólares, teve o 2º maior crescimento do gasto primário nesse período, de 36%.
O crescimento do gasto público da Turquia nesse período foi mais que o dobro do observado no Brasil. A relação Gasto Primário/PIB da Turquia, porém, caiu de 32,5% em 2010 para 31,6% em 2018.
Isso se deve ao fato de que o crescimento do gasto foi acompanhado por um crescimento ainda maior do PIB, de 37,8%, que levou o país a ser o campeão de crescimento da amostra.
Como resultado, ao final do período, em 2018, a Turquia alcançou um PIB per capita de 15 mil dólares, bastante superior ao Brasileiro, que caiu para 11 mil dólares em 2018. Com isso, apesar de ter uma relação Gasto Primário/PIB inferior à Brasileira, a Turquia chegou a um gasto per capita superior ao nosso.
A caso turco mostra, portanto, que é possível reduzir a relação Gasto Primário/PIB mesmo com grande crescimento do gasto real. Para isso, é preciso que o país seja capaz de manter um alto crescimento do PIB.
Para que algo semelhante ocorra no Brasil, é imprescindível melhorar o padrão do gasto público. Na última metade da década o Brasil priorizou gastos com o Legislativo e o Judiciário em detrimento de investimentos públicos e gastos com ciência e tecnologia, por exemplo, que são gastos que têm forte impacto sobre o crescimento do PIB.
A melhora do padrão de gastos e a retomada do crescimento no Brasil passa pela revisão do teto de gastos. Para entender quão absurdo é o congelamento total do gasto primário real por 10 anos como impõe a regra do teto, basta observar que entre as 19 economias analisadas, apenas 3 tiveram queda do gasto primário real nesse intervalo de 9 anos. Ao contrário, a média de crescimento do gasto primário real dos 19 países foi de 15%.
Sem alterar a regra do teto para permitir algum crescimento real do gasto e liberar o investimento público, não será possível acelerar nosso crescimento e assim financiar os serviços públicos de qualidade que os brasileiros tanto desejam. Sem crescimento, serão sacrificados os serviços públicos, ao mesmo tempo que a velocidade da queda da relação Gasto Primário/PIB será reduzida. Não foi o gasto que cresceu muito. Foi o PIB que cresceu pouco.
[1] A reportagem foi publicada online no dia 14 de outubro e na edição impressa no dia 15.