Voltar para onde?

José Francisco de Lima Gonçalves

O fim do padrão ouro, como instituição internacional centrada na Inglaterra, estava decretado com o declínio relativo daquele país. A emergência de Alemanha e Estados Unidos, coadjuvados pela França e pelo Japão, redesenharia a economia global, tanto na geopolítica quanto na economia e nas finanças.

A expansão e diversificação das malhas comerciais e financeiras constituiu a base de consolidação da interação de investimentos em infraestrutura com economias exportadoras de produtos primários. A solidariedade internacional era dada por tais investimentos e pelo financiamento europeu, a haute finance destacada por Polanyi, anfíbia. By chance rather than by design, nas palavras de Hobsbawm.

A Grande Guerra antecipou dramaticamente o fim daquele mundo, transformando os EUA no credor mundial via créditos comerciais e financeiros, públicos e privados, com os aliados. Tais relações se misturaram às dívidas e reparações e mostraram um lado novo por parte do mercado financeiro e do Estado americano.

Em contraste com o isolacionismo imposto pelo Congresso, desde a derrota de Wilson até o esvaziamento da Liga das Nações, planos que misturavam o Estado americano e seu mundo financeiro foram desenhados e implementados de modo decisivo. O Plano Dawes talvez seja o mais destacado, pela originalidade e adequação histórica, embora longe de suficiente de dar conta dos conflitos inerentes ao mundo que acabara e à necessidade de intervenção consciente, não de remendos.

O Plano Dawes foi um arranjo internacional comandado pelo governo e pela finança americana para refinanciar a dívida alemã para com os aliados, dando fôlego às finanças dos dois lados. Os capitais americanos financiaram os desequilíbrios dos balanços de pagamentos, direta e indiretamente, viabilizando a estabilização das moedas em meio a um ciclo “global” de consumo de duráveis e infraestrutura urbana.

A estabilização das moedas e o crescimento econômico viabilizaram o breve período de “volta ao ouro” que retomou o lugar central nas relações econômicas e financeiras globais, agora como dólar-ouro, dada a proeminência dos EUA como credor e exportador.

A complementaridade internacional passa a ser feita por tais fluxos, ainda by chance, embora desde 1919 um embrião de esforços teóricos, práticos e políticos tenha sido plantado. As reuniões de representantes de governos, acadêmicos e financistas desde 1919 buscavam soluções para a instabilidade, mas foram prejudicadas pela responsabilização do outro como produto do nacionalismo.

Tais eventos revelavam o atraso intelectual na compreensão de como aquele mundo, então no fim, funcionava. Hoje é fácil fazer tal denúncia, mas houve contemporâneos que acusaram quem tomou decisões simples em um mundo complexo. A tentativa de buscar entender os fatos esbarrava tanto na fragilidade do conhecimento quanto na claudicante, embora vitoriosa, hierarquia de poder.

Eventos que revelavam também as dificuldades de reestabelecer condições econômicas e políticas, nacionais e internacionais, capazes de superar a trágica herança da Guerra. Isto exigiria diagnóstico competente e que a opinião relevante se libertasse de consensos equivocados, por oportunismo ou convicção.

Ideias forjadas sob condições que não mais existiam revelavam sua fragilidade e inadequação, sua falta de generalidade, sua fraqueza na avaliação histórica. A tentativa de volta ao passado e a busca de um culpado eram as únicas referências politicamente cabíveis. A crença na restauração do nacionalismo como ponto de partida em um mundo que herdara, isto sim, uma hierarquia de moedas, subordinaria umas a outras, ou a outra. No limite, reparações e orçamentos seriam incapazes de enfrentar os desafios pela cegueira a alternativas e a decorrente marcha da insensatez de Barbara Tuchman.

Comparações são complicadas, embora possam indicar hipóteses. Muita coisa ocorreu entre 1933 e 2008, em termos econômicos, financeiros, tecnológicos e geopolíticos. Mas, olhando-se para as instituições criadas para evitar o retorno ao ambiente nacionalista e belicista que decorreu da incompetência das economias de mercado – isto é, monetárias – sua destruição impõe a necessidade de criação de outras, baseadas na análise desinteressada da crise atual e nas formas de enfrentá-la e superá-la.

E é fundamental não tentar voltar a um tempo em que a China era uma colônia e os Estados Unidos só entravam em campo se fosse possível receber os juros dos alemães ou se continuação da Guerra ameaçasse seu território e zonas de influência. Hoje, inflação e juros são baixos, assim como o desemprego. A bolsa bomba.

A inflação média nos anos 1920, excetuado o imediato pós-guerra, nos EUA, foi de zero por cento ao ano. A produção industrial no período cresceu em média 5% ao ano. A taxa de desemprego chegou a 3%. A taxa de juros do Fed de Nova Iorque saiu de 6,5% no início do período para 3,5% em 1927 e 5% em 1928.

A leve recessão em 1927 nos EUA, fruto de interrupção na produção de automóveis, e a crise externa da Inglaterra, fruto da volta ao padrão ouro e da política francesa de acumulação de ouro por movimentos bruscos de conversão de libras e outras moedas, revelaram o eixo dos anos 1920.

O FED, sensibilizado, e em movimento da precária coordenação de políticas monetárias típica do período, reduziria a taxa de juros, estimulando saída de ouro dos EUA para aqueles países e a Alemanha. Obviamente, parte da liquidez criada dirigiu-se a ações nas bolsas americanas, em alta há muitos meses.

No começo de 1928, o Fed elevou a taxa de juros de 3,5% para 5%. Com inflação negativa e contração das reservas bancárias pela venda de quase todos os títulos públicos que detinha, o arrocho das condições financeiras foi muito forte. Dada a proeminência do dólar em meio ao padrão ouro “reconstruído”, quase todos os bancos centrais seguiram o FED, o que não foi suficiente para evitar o retorno dos capitais aos EUA. A desaceleração da economia global em 1929, independente do colapso das bolsas, esteve ligada a isto.

O nível espetacular a que chegaram os preços das ações mostrou-se incompatível com qualquer referência econômica. Deu no que deu.

Difícil fazer um contrafactual. Na ausência da estabilização das moedas, o conflito político seria insolúvel. Tal conflito já estava, porém, no fundo das condições criadas em Versalhes. A geração de caixa das empresas americanas não seria transformada em exportação de capital e as ações teriam subido mais. O FED não precisaria elevar os juros. Difícil dizer que daria certo, mesmo sem os “erros de política” encontrados – ex post – pelos liberais.

A pandemia amplia e aprofunda os riscos sugeridos. E traz novos.

José Francisco de Lima Gonçalves é economista-chefe do Banco Fator e professor da FEA-USP.

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