Por André Roncaglia e João Romero
A crise da Covid-19 prenuncia a retomada da capacidade de planejamento por parte do Estado ao redor do mundo. Esta competência é fundamental não só para orientar o processo de desenvolvimento econômico de países ou regiões, mas também para responder aos desafios sistêmicos que se apresentam à sociedade de tempos em tempos. No mundo todo já começam a pipocar discussões nesse sentido. Apesar disso, contrariando novamente a tudo e a todos, o governo Bolsonaro continua a reiterar sua determinação em seguir com o desmonte do Estado brasileiro.
Como ressaltou Karl Polanyi em seu brilhante livro de 1944, A Grande Transformação, após cada onda de políticas de liberalização do mercado segue-se uma retomada da atuação reguladora do Estado para proteger a sociedade das pressões e efeitos negativos da ampla subordinação das atividades humanas ao mercado.
Apesar da grave crise financeira de 2008, ocasionada por problemas de regulação no sistema financeiro norte-americano, foi somente depois da crise europeia de 2010 que a Europa começou a intervir um pouco mais na economia, através de políticas de especialização inteligente, e com mudanças no padrão de atuação do Banco Central Europeu. Mais recentemente, a crise ambiental vem reforçando ainda mais a importância de atuação estatal orientada para a missão de lidar com o processo de mudança climática.
Agora, com a crise do covid-19, surgem novos debates sobre a ampliação da atuação do Estado na economia, até mesmo entre adeptos na economia convencional. A proposta de um “seguro sistêmico” de curto prazo de Frydman e Phelps, por exemplo, transcende o gasto governamental na sustentação da despesa agregada e no alívio de condições financeiras das empresas. Trata-se de uma mudança qualitativa que prevê “intervenções em larga escala para direcionar a produção e a distribuição de bens e serviços”, em linha com a reconversão industrial prevista no Defense Production Act (DPA) dos EUA. Na Itália, por sua vez, começa a se delinear uma estratégia de desenvolvimento industrial para retomada do crescimento.
Entre economistas, porém, há ainda grande resistência à ampliação de intervenções do Estado. Na abordagem econômica atualmente dominante, chamada de escola neoclássica, até os anos 1960, um de seus principais desafios foi comprovar formalmente a possibilidade lógica de o mercado equilibrar a economia e mantê-la estável naquele ponto único de equilíbrio ótimo.
Conforme crescia a lista de situações nas quais o mercado falha em gerar o resultado ótimo pra sociedade (externalidades, falhas de coordenação, e por aí vai), procurava-se justificativas para evitar intervenções do Estado na economia. As falhas de governo, alegava-se, poderiam ser ainda piores que as do mercado.
A vilanização teórica da atuação do Estado deu match perfeito com a emergente filosofia política no início dos anos 1980. A despeito do grande aparato estatal criado após a Segunda Guerra Mundial, a partir dos anos 1980 os governos foram relegados ao papel de apenas dar suporte ao setor privado, sobretudo quando este enfrentava algum problema localizado. Parafraseando Keynes: o neoliberalismo ganhou o ocidente como a Inquisição ganhou a Santa Sé. O mercado tornou-se uma engrenagem tão “vistosa, tão temida e poderosa”, que recolocou a submissão da sociedade às suas regras mesmo após a era de ouro do capitalismo: as três décadas de reinado keynesiano no pós-guerra, que geraram as maiores taxas de crescimento mundial da história.
Um dos problemas da redução drástica do tamanho do Estado, porém, é que quando se precisa dele, sua capacidade de resposta é limitada. A dificuldade de organizar uma resposta eficiente à epidemia de COVID-19 deixou isso muito claro, despertando renovados questionamentos sobre a forma de atuação do Estado na sociedade.
A COVID-19 colocou em xeque os quase quarenta anos de domínio das ideias liberais sobre a organização econômica do ocidente. Ao colocar a agenda de saúde pública no centro das atenções de todos os países, o vírus deflagrou uma pane no sistema de mercado e nas normas de sociabilidade. Pela primeira vez em décadas, a economia foi forçada a trabalhar para a sociedade.
Frente à epidemia, a restrição de recursos que sempre carregou de força moral o discurso econômico convencional deu lugar a reações inesperadas dos mais celebrados expoentes da economia convencional: “isto é uma guerra; não é hora de pensar em dívida, em austeridade”. A melhor foi proferida por Kenneth Rogoff, o sacerdote do limite ao endividamento público, em entrevista à PBS: “se tivermos inflação, e daí?”.
Entrou em cena a economia do lockdown, que requer uma paralisia forçada dos setores não essenciais para se evitar o contato entre pessoas. Perde-se parte do motor principal da economia que é o efeito multiplicador da renda que vem com o fluxo circular do sistema (a despesa de um é a renda do outro e assim por diante). O sistema produtivo é estressado até o limite para garantir à população o acesso a bens elementares à manutenção das instituições básicas que regulam a sociedade. Seria como se o corpo econômico entrasse em coma induzido, funcionando apenas o suficiente para se preservar. O isolamento social requer que o coração continue bombeando sangue para os confins mais remotos do corpo social, mesmo em condições muito adversas.
A crise sanitária se impõe como a mãe das falhas de mercado. O Estado precisa prover os recursos necessários para que os cidadãos fiquem isolados, exatamente para prevenir a sobrecarga de um setor específico, o de saúde. A reclusão domiciliar implica a necessidade de uma drástica realocação produtiva rumo ao sistema de saúde, à produção dos bens requeridos para o funcionamento desse sistema, e a outros setores essenciais, enquanto inúmeras atividades são interrompidas e/ou afetadas pela queda de demanda por bens e serviços menos essenciais. Como a realocação é temporária, dificilmente os elevados custos desse processo justificam os benefícios financeiros. Ademais, a cobrança de preços elevados nesse momento é moralmente rejeitada, prejudicando o tão aplaudido mecanismo de preços.
É aqui que entra o Estado com sua capacidade de resposta a choques imprevisíveis que ameaçam a sobrevivência social. Tal qual o aparato imunológico do corpo, o Estado precisa estar equipado adequadamente para lidar com o invasor em momentos críticos.
Conforme argumentou Mariana Mazzucato em artigo recente, países com melhores estruturas de planejamento e maior capacidade estatal têm respondido mais efetivamente às externalidades e falhas de coordenação criadas pela crise sanitária. Na Coreia do Sul, Nova Zelândia e Vietnã, por exemplo, a resposta à epidemia foi mais rápida e mais bem coordenada, reduzindo assim seus efeitos perversos. Mas isso pouco importa ao governo Bolsonaro.
Embora ideias liberais tenham forte apelo à elite econômica e política brasileira, após a fim da ditadura militar, a Constituição de 1988 promoveu considerável expansão do estado de bem-estar social no Brasil. Expandiram-se os recursos para a educação pública e foi criado o SUS. Em busca de garantir direitos fundamentais aos cidadãos, novos programas foram criados nas décadas de 1990 e 2000. Foi criado o Bolsa Escola, que depois foi expandido para dar origem ao Bolsa Família, e diversos outros programas foram implementados, como o Minha Casa, Minha Vida.
Após 10 anos de governo trabalhista (2003-2013), porém, assistimos à erupção de uma rebelião social motivada pelo encarecimento do transporte público. Paradoxalmente, os famosos “20 centavos” deflagraram uma onda anti-Estado nos anos seguintes.
Depois das manifestações de junho de 2013, o impeachment controverso de uma presidenta eleita deu lugar a uma agenda de “reformas” com claro objetivo: reduzir ao máximo o Estado ao papel de auxiliar subalterno do mercado. Em 2016 essa agenda ganhou um governo para chamar de seu e dar cabo à sua execução. No mesmo ano foi implementado o teto de gastos, que congelou os gastos públicos por 10 anos e desvinculou receitas da saúde e da educação, contrariando a Constituição de 1988. Em 2017 veio a reforma trabalhista, que desregulamentou o mercado de trabalho, retirando direitos dos trabalhadores e recursos dos sindicatos, enfraquecendo sua capacidade de barganha.
Essa agenda foi aprofundada no governo Bolsonaro. O Ministério do Planejamento, que vinha perdendo relevância ao longo dos anos, foi extinto em 2019. O BNDES, outra importante instituição de planejamento do país, sofreu drástico encolhimento desde o impeachment, e está agora sendo transformado em central de privatizações. Além disso, em setembro de 2019 foi aprovada a Lei da Liberdade Econômica. Dentre várias medidas de flexibilização das leis trabalhistas, a lei extinguiu o Fundo Soberano do Brasil, criado em 2008 para estabilizar as oscilações dos preços das commodities comercializadas no exterior, e revogou a Lei Delegada 4/62, a versão brasileira da DPA dos EUA.
Sem a Lei Delegada 4/62 e sob o viés neoliberal da equipe econômica do governo Bolsonaro, o Estado brasileiro renunciou à prerrogativa de coordenar diretamente o processo econômico, essenciais em momentos como o atual. Particularmente relevante no contexto da crise sanitária, essa lei atribuiu ao Estado a prerrogativa de garantir “a livre distribuição de mercadorias e serviços essenciais ao consumo e uso do povo”, em especial para os casos de crises de abastecimento. A Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública, por sua vez, não estabeleceu o retorno de tais instrumentos de maior alcance.
Com efeito, o que vemos no Brasil é a mesma timidez e hesitação do governo Trump em lançar mão do arsenal do Estado para enfrentar esta emergência humanitária em solo pátrio. No nosso caso, há ainda o agravante de que o Brasil se trata de um país subdesenvolvido, com altos níveis de pobreza e desigualdade, que se recuperava de uma grave crise, e que ainda passava por forte redução do Estado.
Não é atoa que as medidas adotadas pelo governo para lidar com a epidemia e com a crise têm tido grandes dificuldades de implementação. Recursos direcionados à saúde estão ficando parados, beneficiários da Renda Básica Emergencial não estão recebendo os recursos devidamente, e o crédito disponibilizado pelo governo não está chegando às pequenas empresas. Não surpreende. Afinal, sem capacidade estatal, fica difícil fazer as políticas públicas funcionarem em momentos de necessidade.
Como exemplos internacionais de retomada do planejamento Estatal têm indicado, porém, a crise causada pela epidemia de Covid-19 não deixará alternativa senão promover maior atuação do Estado na economia, em benefício da sociedade. No Brasil, contudo, o conturbado contexto político e a busca de desmonte do Estado ainda em curso deverão atrasar esse processo. A busca de tornar permanente a Renda Básico Emergencial é um bom começo. Mas é preciso discutir com mais cuidado e profundidade a reconstrução das estruturas de planejamento e da capacidade estatal. Engana-se, porém, quem acha que tais mudanças virão sem resistência.