Cédulas e moedas de real: brasileiros estão guardando dinheiro vivo em meio à pandemia. (Joel Santana Joelfotos/ Pixabay)

Renda Básica x Renda Mínima: o que está em jogo

Por Lena Lavinas (Professora Titular do IE-UFRJ), Pedro Rubin (mestrando do IE-UFRJ) e Lucas Bressan (doutorando do IE-UFRJ).

Há quase trinta anos o debate sobre renda mínima/renda básica está presente no Brasil. Na atual conjuntura, contudo, retorna com força máxima, agora alicerçado em propostas que defendem a adoção de uma renda básica universal e que cobrem a quase integralidade do espectro político, da direita liberal até a extrema esquerda.

Não por acaso, os impactos tão profundamente disruptivos provocados pela pandemia do novo coronavírus relançaram mais uma vez a esperança de que chegou a hora de fazer valer a ideia de uma renda básica de cidadania. Essa deve atuar como mecanismo de garantia de um patamar mínimo de sobrevivência com dignidade e livre de constrangimentos impostos pelas assimetrias sociais que caracterizam as sociedades capitalistas.

Duas ideias-força ganharam as manchetes nesse ano de pandemia: a da renda básica e a da economia dos cuidados. Ambas têm a ver com os sistemas de proteção social que – quase todos – mostraram seus limites e o elevado grau de desfinanciamento que já sofriam antes do choque da Covid-19, notadamente na área da saúde. Isso foi verdade no Reino Unido, na França e em vários países onde há sistemas públicos de saúde consolidados, caso também do Brasil. E lá também onde os sistemas públicos são nitidamente deficientes, dada sua baixa cobertura pública, como nos Estados Unidos.

A pergunta que se coloca é se é chegada a hora da renda básica de cidadania no Brasil. Talvez sim, talvez não, a depender das nossas escolhas no combate às desigualdades, nos caminhos para fortalecimento da democracia, na recomposição da esfera pública e das instituições. E também garantia de atendimento de um conjunto de necessidades, no melhor padrão e qualidade, ao conjunto da população, de modo a que seu bem-estar seja independente da sua renda, do seu status, do seu patrimônio. Da certeza de que todos tenham o direito incondicional aquilo de que necessitam.

Nestas notas, que visam contribuir ao debate em curso, partimos de quatro questões para refletir sobre a oportunidade de adoção de uma renda básica de cidadania:

  1. Quais os ensinamentos dessas quase três décadas de programas de transferência de renda e como eles se vinculam ao sistema de proteção social brasileiro?
  2. O que aconteceu na pandemia, aqui e em outros países, com os programas ad hoc adotados e que direções parecem prevalecer nessa fase de Covid ano II, a caminho do pós-pandemia.
  3. Como os programas de transferência de renda no mundo já cancelaram as condicionalidades e o que essa tendência à generalização da garantia de renda mínima tem mostrado?
  4. Uma Renda Básica de Cidadania é a melhor solução para o Brasil de hoje?

a) Qual o caminho trilhado pelo Brasil no campo das transferências de renda?

O debate sobre programas de garantia de renda mínima surge na gestão FHC. Naqueles anos, em meio à redemocratização do país, um conjunto de iniciativas voltadas para assegurar à população mais carente uma renda regular passa a ser implementada pelas esferas municipais. Via de regra, tinham características comuns, impondo condicionalidades e fixando linhas de pobreza muito baixas, o que implicava cobertura bastante reduzida do público-alvo. A exceção foi o Programa Bolsa Escola do Distrito Federal, do governo Cristovam Buarque.

Este programa foi uma exceção pelo seu extraordinário impacto, derivado do seu desenho: estabeleceu uma linha de pobreza elevada, de meio salário mínimo per capita; as famílias beneficiadas recebiam um salário mínimo, à época já na sua trajetória de recuperação do seu valor real; e atendeu a 80% do público-alvo. Dadas essas características, não apenas reduziu massivamente as taxas de pobreza, como teve um efeito demonstração significativo, levando à multiplicação de programas afins em outras cidades e a que o então Ministro da Educação, Prof. Paulo Renato, adotasse o Programa Bolsa Escola em nível nacional, ao final do segundo mandato do presidente Cardoso. Sua cobertura, contudo, foi bem modesta, atendendo de início apenas a 1 milhão de famílias, com um benefício num valor extremamente baixo, R$ 15 mensais, em torno de R$ 43 em valores de hoje.

Um outro diferencial do programa Bolsa Escola do DF foi ter ampliado fortemente o gasto social com provisão indireta na área de educação, saúde, infraestrutura de moradia, atendendo prioritariamente à população pobre beneficiária do programa. Ficou claro, então, que apenas o auxílio monetário era insuficiente para suprir as demandas imediatas que tinham impacto no aproveitamento escolar e no bem-estar das crianças.

Dali em diante, houve muitos avanços no aprimoramento da dimensão “combate à pobreza”  do sistema de proteção social, consagrado na Constituição de 88. A Constituição havia instituído o BPC (Benefício de Prestação Continuada) para idosos pobres, assegurando um benefício no valor de um salário mínimo, sem condicionalidades, porém deixara de fora o maior contingente de pessoas pobres, adultos em idade ativa e crianças e adolescentes, que somente com a criação do Programa Bolsa Família, em 2004, vão finalmente ser contemplados com transferências de renda condicionadas. De sua criação até aqui, o programa pouco mudou, mantém uma linha de pobreza baixa (hoje abaixo da linha do Banco Mundial de extrema pobreza), um benefício básico insuficiente (R$ 89,00 mensais), tal como é baixo o valor das transferências às crianças e adolescentes (entre R$ 1,30 e 1,60 por dia ou R$ 41,00 e R$ 48,00 respectivamente) – fazendo com que o benefício médio seja por volta de R$ 188,00 em junho de 2021.

Sobretudo, o PBF foi marcado por uma dinâmica procíclica, estendendo levemente sua cobertura em épocas de crescimento, mas sofrendo as restrições impostas pelos cortes de gastos e não-indexação do benefício e da linha de pobreza correspondente a partir da segunda década de 2000, quando o ciclo econômico começa a desacelerar rapidamente.

Depois do golpe parlamentar que vivemos, e num momento de crescimento do número de pobres em função da recessão econômica aguda de 2015 -2016, o programa estacionou numa cobertura um pouco abaixo dos 14 milhões de famílias beneficiárias, deixando de atender à demanda em alta. Excluiu, ao invés de acolher e proteger.

Uma das razões para isso ocorrer é o fato de o PBF não ser um direito, dado que atender aos critérios de elegibilidade não é suficiente para ter acesso ao benefício, e ser tributário de decisões discricionárias, caixa do governo, orçamento e etc. Essa falha é uma urgência que deve ser resolvida assim que for possível à sociedade brasileira retomar o comando de suas escolhas e prioridades, algo que a presente conjuntura política inviabiliza.

Enquanto isso, a Lei de Renda Básica, aprovada 24 horas antes da criação do PBF, em 2004, permaneceu engavetada, fato que até hoje não foi suficientemente esclarecido. Argumentos tais como “é melhor ter uma lei pronta na gaveta pois a qualquer momento ela pode servir” não se sustentam no campo das políticas públicas. A lei tampouco serviu por ocasião da criação ao Auxílio Emergencial, em 2020.

A Covid-19 e a grande mobilização do Congresso e da sociedade em prol da aprovação do Auxílio Emergencial trouxeram duas evidências incontestáveis:

  1. de que o desenho do nosso programa de combate à pobreza era deficiente, por todos os pontos já assinalados;
  2. E que também nosso seguro-desemprego era absolutamente inadequado e anacrônico para atender a um choque externo que suprimiu milhões de empregos e jogou no desemprego ou para fora do mercado de trabalho quase 21 milhões de pessoas (IBGE, PNAD C 2021). Isso se deve ao seu desenho muito restritivo, impondo anos de contribuição antes de haver acesso ao benefício, além de não contemplar os trabalhadores informais ou aqueles que, perdendo seus empregos, não haviam preenchido os critérios de elegibilidade.

O orçamento de guerra, extraordinário, permitiu mitigar o sofrimento da população, porque instituiu um benefício num valor (R$ 600,00 por cinco meses, depois reduzido para R$ 300,00), mais próximo das necessidades da população e ampliou a cobertura emergencial para 67,2 milhões de pessoas, atendendo, portanto, à população trabalhadora que fora impedida de seguir trabalhando. Para fins de comparação, o valor inicial do auxílio emergencial é  mais que seis vezes o benefício básico do PBF (atualmente R$ 89,00, limitado a um por família). Esse é o maior aprendizado da pandemia. Erradicar a pobreza extrema e a fome é possível.

Logo, mesmo sem a adoção de uma renda básica universal, mas redefinindo, de acordo com as necessidades da população, os parâmetros para alívio da pobreza, foi possível reduzir a desigualdade e o número de pessoas abaixo da linha de pobreza durante a vigência do auxílio emergencial.

b) O que se viu com a pandemia em outros países? Adotaram-se programas de renda básica?

Até o presente momento, isso não aconteceu. Estão encaminhados? Tampouco. Há projetos em disputa e a renda básica de cidadania está no páreo. Entretanto, muito do que é transferência de renda para atenuar a pobreza vem sendo denominado de renda básica, quando se trata de transferências compensatórias, porém incondicionais. São focalizadas num público-alvo, mas livres de condicionalidades.

Grosso modo, os orçamentos extraordinários implementados no âmbito de muitas economias ocidentais durante a pandemia mostraram-se generosos, ad hoc (fora dos marcos da institucionalidade dos sistemas de proteção social nacionais, qualquer que fosse seu escopo). Certamente o aprendizado da crise de 2008, cuja recuperação foi lenta com grande custo social, fez com que fosse assegurada, desta vez, a liquidez necessária para enfrentar a paralisia total da atividade econômica.

Nos Estados Unidos, o CARES ACT, aprovado ainda na administração Trump, enviou um cheque de US$ 1.200 para os americanos com renda anual inferior a um determinado patamar; garantiu 600 dólares por semana como seguro-desemprego federal para complementar o mesmo benefício ofertado pelos estados, na média em torno de US$ 400-450 por semana. Houve suspensão temporária do pagamento da dívida dos estudantes com o governo federal e das hipotecas, embora não tenha havido perdão de dívidas.

A nova administração Biden adotou uma renda básica? Não, nem parece inclinado a fazê-lo. O senador Bernie Sanders, que até 2017 parecia favorável a UBI (Universal Basic Income), acabou optando pela estratégia de priorizar a criação de empregos. O presidente, no seu American Jobs Plan, renovou o envio de um cheque às famílias de menor renda, desta feita no valor de US$ 1.400; estendeu, até setembro de 2021, o seguro-desemprego federal a US$ 400 para 18 milhões de desempregados e 8 milhões de informais; está alocando US$ 400 bilhões em 10 anos para o que chama de in-home care, isto é, ocupações ligadas aos serviços assegurados a idosos e portadores de deficiência. A meta é capacitar a mão de obra e valorizar o emprego nessas atividades hoje precarizadas e mal remuneradas – Biden entende isso como a infraestrutura social necessária que vai pavimentar a retomada de um novo modelo de desenvolvimento. Vai criar creches para famílias de baixa renda, colleges gratuitos nas pequenas cidades. Sem falar no grande investimento com a transição para uma economia verde, que deve criar empregos que deverão elevar a remuneração média das ocupações. Em paralelo, com o American Family Plan, vai oferecer, por um ano, um benefício mensal no valor de US$ 300 por mês a todas as crianças americanas com menos de 17 anos. Espera-se que essa medida temporária se torne um benefício permanente.

Já a Espanha fez diferente: em lugar de instituir um programa ad hoc, reformou de imediato seu programa de renda mínima assistencial, cujo benefício para uma pessoa subiu para € 580, chegando a mais ou menos € 1.100 para uma família de 3 membros. São cerca 850 mil pessoas atendidas. Da mesma maneira, o governo espanhol está revendo neste momento o valor das aposentadorias que, em queda nos últimos anos, explicam as dificuldades crescentes das pessoas idosas em atender às suas necessidades básicas e as levam muitas vezes a recorrer à hipoteca reversa, vendendo com um enorme deságio sua propriedade a bancos para sobreviverem e pagarem as contas do dia a dia.

Temos, assim, duas estratégias distintas: a Espanha optou por reformar seu sistema de proteção social por dentro. Os Estados Unidos avançam, criando direitos como o benefício mensal para as crianças (child care tax credit), mas no âmbito de um imenso programa de médio prazo, onde a meta é a reorganização da economia americana, a modernização da sua estrutura produtiva, incorporando a classe trabalhadora e tendo a elevação dos salários como meta.

Em nenhum dos casos o caminho a seguir foi na direção de uma renda básica universal, muito embora nos dois países haja movimentos sociais atuantes em sua defesa.

Vamos pensar agora no Brasil: aqui, o valor nominal do salário mínimo é, em junho de 2021, de aproximadamente R$ 1.100. Segundo o DIEESE, tomando como base o valor de uma cesta básica nas principais cidades do país, neste mesmo mês de junho, ele deveria situar-se em 5.421,00, ou seja, praticamente 5 vezes o atual.

Quando estivermos retomando as rédeas do país, qual eixo devemos apoiar?

A defesa de uma renda básica de cidadania pode dificultar ou deve promover a valorização do salário mínimo? Como elevar seus ganhos reais sem previamente investirmos massivamente na educação e na formação da classe trabalhadora do futuro?

Estudos do Banco Mundial e da CEPAL já sinalizaram o que se sabe: durante a pandemia, com os lockdowns, houve perda de habilidades cognitivas das nossas crianças, longe da escola por mais de um ano. Isso vai demandar quintuplicar os investimentos na área de educação, apoiar os professores, melhorar seus salários, reconstruir a infraestrutura das escolas, colocar banda larga de qualidade em todas as unidades escolares do país e avançar no ensino em tempo integral. O que vemos por ora é a reestruturação acelerada, mais uma vez, da educação superior, com grandes grupos financeiros e conglomerados da educação, como o Cogna associados a operadoras de telefonia, como a TIM, prontas para ofertar centenas de cursos de capacitação, graduação e pós por aplicativos em celulares. Se não formos capazes de oferecer provisão pública de qualidade, não apenas o endividamento das famílias e dos jovens para pagar esses programas vai seguir crescendo, como as transferências de renda que viermos a adotar servirão de colateral para obter empréstimos e outros produtos financeiros junto aos bancos. O que, por sinal, já ocorre para franquear acesso à educação privada.  

Como fica o piso per capita da saúde, que era de R$ 596 em 2014, e hoje é de R$ 555, seguindo em queda? O SUS esse ano precisava de R$ 168 bilhões e vamos ter R$ 123,8 bilhões. Como vamos reerguer o nosso sistema público que vem sendo engolido pela saúde complementar, cuja regulação (planos coletivos) é praticamente impossível? Em plena pandemia, com mais de 20 milhões de pessoas desempregadas e desalentadas, a adesão aos planos privados cresce mais de 2% ao mês.

Enquanto isso, jamais o grau de endividamento das famílias brasileiras foi tão alto. Segundo a Confederação Nacional do Comércio, em dado divulgado no início de julho de 2021, 69,7% das famílias se declaram endividadas, maior número desde 2010, quanto tem início seu levantamento.  

O endividamento das famílias – todas as dívidas que as pessoas têm em relação à renda acumulada dos últimos 12 meses – atinge 58% neste momento, segundo o Banco Central, também o maior valor da série (iniciada em 2005).

c) Os programas de transferência de renda no mundo já cancelaram as condicionalidades – o que a tendência à generalização da garantia de uma renda mínima tem mostrado?

As transferências monetárias hoje são o pilar da política social nos países em desenvolvimentos e emergentes. Em 2019, o Banco Mundial estimava haver 2,5 bilhões de pessoas beneficiárias de algum tipo de transferência de renda assistencial. Na sua maioria, como mostra Lutz Leisering em seu recente livro The Global Rise of Social Cash Transfers (Oxford 2019), sem condicionalidades. O Banco Mundial, o FMI, a Cepal e tantas outras instituições multilaterais já defendem uma renda básica, inclusive em escala planetária, como propôs Fernando Filguera, juntamente com outros autores (2020), de US$ 2,90 dia ou 7% do PIB mundial.

Assegurar uma transferência de renda livre de condicionalidades é algo que já faz parte do desenho desses programas por uma razão muito simples. O controle das famílias e dos indivíduos se faz através de aplicativos que podem acompanhar seus gastos e deslocamentos, dispensando os velhos mecanismos que inchavam os custos administrativos. Seu disciplinamento social se faz através da moral da dívida. Essa é uma obrigação que tem efetivamente custos elevados para quem cai na inadimplência. Sobretudo porque corta o mecanismo de garantia de renda mais efetivo que têm as pessoas que não são detentoras de patrimônio, títulos de dívida ou ações: tomar empréstimos bancários.

O que aconteceu tanto no Estados Unidos como no Brasil durante a pandemia? Apesar de em ambos os países a insegurança alimentar ter aumentado exponencialmente, ao receberem generosas transferências de renda, a primeira medida de muitas famílias inadimplentes ou apenas endividadas foi correr para aos bancos e abater parte da sua dívida, saindo da condição de negativado. No Brasil, a taxa de inadimplência medida pelo Banco Central caiu durante a vigência do Auxílio Emergencial. Segundo a Serasa Experian, o número de inadimplentes se reduziu de mais de 65 milhões para 61 milhões.

Ou seja, fluxos de renda regulares acabam entrando no circuito financeiro para saldar dívidas e reconstituir o ciclo de endividamento sobre novas bases. Qual a razão do endividamento de grande parte das pessoas que tomam empréstimos? Não apenas reembolsar crédito estudantil, mas rolar dívida no cartão e pegar crédito de consumo (“recursos livres”) para pagar contas regulares com comida, medicamentos, luz, gás, aluguel etc.

Segundo o Banco Central, em abril de 2021, 24% de todo o saldo da carteira de crédito foi para pessoas cuja renda é de até dois salários mínimos; 49,7% para aqueles com renda inferior a cinco salários mínimos, incluindo nos dois casos pessoas com renda zero. Segundo a PNAD Contínua, 91% dos ocupados no primeiro trimestre de 2021 recebem menos de R$ 5.500,00 mensais. Ou seja, é toda a classe trabalhadora que está endividada, não para ampliar seu patrimônio adquirindo ativos, numa conjuntura em que os juros estavam mais baixos. A dívida é a condição indispensável para a reprodução da sua força de trabalho.

Não se discute que cada um é livre de usar a renda que recebe no seu trabalho, ou através de uma transferência do Estado, como quiser, inclusive para pagar dívidas. Mas quando o endividamento das pessoas e das famílias se torna estrutural, e aumenta apesar de haver gente renegociando dívidas e saindo da inadimplência, isso quer dizer que o grau de financeirização da economia indica que assegurar uma renda básica de cidadania sem uma oferta de bens e serviços públicos de qualidade, que atendam às necessidades da população, faz com que o papel do Estado na política social passe a ser apenas a garantia das condições de crédito. Quem, de fato, passa a gerenciar a política social é o setor privado financeiro, sujeitando-a às suas limitações e aos seus interesses (notadamente, o aumento do lucro). Em outras palavras, a renda básica parece levar ao aprofundamento do processo de colateralização da política social.

Aliás, isto já está em curso. Como anunciado pelo Ministério da Economia, a reforma do Programa Bolsa Família, do atual governo, prevê que até 40% do benefício sirva para honrar dívidas junto ao setor bancário.

d) Chegou a hora e a vez da Renda Básica de Cidadania no Brasil?

Num país onde a esfera pública é tão débil e nada compartilharmos entre nós, nem mesmo a vacinação (com a concorrência do privado e a desistência de milhões de pessoas de se vacinar contra a gripe, por exemplo), a introdução de uma renda básica de cidadania para o conjunto da população seria, por ora, forçosamente num valor por demais baixo e, portanto, inadequado para suprir as necessidades de quem já vive com dificuldade. Por isso mesmo, essa renda básica não tornaria desnecessário dispor de programas de combate à pobreza, que certamente manter-se-ão indispensáveis para ajudar aqueles que por razões conjunturais podem enfrentar a destituição.

É a hora da renda básica? Cabe à sociedade brasileira decidir. Vamos entrar num período longo de reconstrução. Quando esse assombro que tomou nossos sentimentos e trouxe tanto sofrimento à população passar, o mais urgente parece ser consolidar de imediato algumas dimensões do sistema de proteção social, operando rapidamente mudanças naquilo que deve ser aprimorado: resgate do mercado de trabalho e do emprego, valorização do salário mínimo, assistência, saúde, educação, seguro desemprego e segurança. É preciso sustar o assassinato da população pobre e negra e indígena.

Temos de consolidar um sistema público e universal de provisão, cujo financiamento, por si só, já demanda uma reforma tributária verdadeiramente progressiva e revolucionária. Quando isto estiver assentado e funcionando de forma condizente com as demandas da população, então podemos passar a marcha para o que mais nos pareça indispensável.

Já houve um posicionamento favorável do Supremo, das defensorias públicas, do Ministério Público e dos partidos políticos, que desde as eleições de 2018 defendem uma “renda básica” em seus programas. Ou seja, todos concordam que é preciso assegurar, em caráter emergencial, algum tipo “renda básica”. Entretanto, não aparentam falar a mesma língua empregada pelos que defendem uma renda básica universal e incondicional para a totalidade dos brasileiros.

É muito comum chamar o que é uma transferência de renda de “renda básica”, quando, na realidade, não é disso de que se está falando, mas apenas do que se denomina “transferências compensatórias”. Parece haver, assim, um alargamento da ideia de qualquer tipo transferência de renda que garanta o mínimo de subsistência se torna, automaticamente e sem outros critérios, um tipo de “renda básica”.

Mas por onde começar no que diz respeito às transferências de renda incondicionais, para aqueles que necessitam de uma renda de subsistência, de uma “renda básica”?

É possível apresentar uma proposta, como tantas outras, que não deve ser vista nem como melhor, nem como pior, apenas mais uma. Essa pode ser dividida, em um primeiro passo, no campo da assistência, de um lado, e da extensão dos direitos universais incondicionais, de outro, com a garantia de um benefício a todas as nossas crianças. Evidentemente, a garantia de tal benefício implicaria a eliminação dos créditos tributários as famílias por dependentes e com despesas atreladas à educação.

A valorização de nossos programas de transferências de renda deve partir do princípio de que todos devem ser incondicionais, rompendo com a lógica do Bolsa Família e dos programas que o antecederam (como o Bolsa Escola, citado no início do texto). Esse deve ser apenas um programa de combate à pobreza, de erradicação da miséria e da insegurança alimentar no Brasil. Nossa proposta é que o benefício básico do Bolsa Família se situe em R$ 400, valor baseado no custo médio das cestas básicas no Brasil, de acordo com números levantados pelo DIEESE. Esse valor cobriria 75% da oferta de alimentos que uma cesta básica pode garantir a uma família de quatro pessoas por mês. A linha de pobreza seria a do Banco Mundial: US$ 5,50 PPC por dia, equivalente a aproximadamente R$ 436,00, de acordo com a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE (2020). A cobertura seria de aproximadamente 20 milhões de famílias, com um custo anual estimado de R$ 96 bilhões, ou 1,3% do PIB de 2019.

Ao tempo mesmo, seria implementado um benefício universal para menores (0-17 anos) de R$ 200 mensais, com custo anual de R$ 112,8 bilhões, ou 1,5% PIB de 2019, atingindo aproximadamente 47 milhões de pessoas nesta faixa etária.

Ambos os programas somariam menos de 3% do PIB, algo factível de ser implementado rapidamente dado seu baixo custo.

Não parece existirem condições, no Brasil atual, de um consenso em torno do que deva ser chamado de “renda básica de cidadania”[1], nem como ela deva ser implementada, implicando, necessariamente, em uma reforma completa do nosso sistema tributário e do sistema de proteção social, já ameaçado pela atual reforma em debate pelo governo.

Assim, uma “renda básica de cidadania”, por si só, não é suficiente, em nenhum lugar do mundo, para garantir todas as necessidades e equalizar as oportunidades para o conjunto da população. Em um país como o Brasil, com tantos déficits, uma provisão pública, universal, que equalize aquilo que todos nós compartilhamos – ou deveríamos compartilhar -, como educação, saúde, segurança, etc., deve preceder a implementação de um programa de renda básica universal incondicional.

O que é certo, no entanto, é que, hoje, programas de transferência de renda dispensam condicionalidades, que se tornaram anacrônicas. Exemplo disso, o programa de garantia de renda que acaba de ser aprovado no estado da Califórnia, com apoio de democratas e republicanos. O estado vai repassar recursos às esferas locais que vão decidir qual o valor do benefício a ser pago prioritariamente a grávidas e jovens que deixaram centros de acolhimento e necessitam de amparo para a transição ao mundo do trabalho. É um programa focalizado que atende a grupos vulneráveis e cujo valor do auxílio mensal deve variar entre US$ 500 e US$ 1.000.


Notas:

[1] A Defensoria Pública da União (DPU) divulgou, em junho de 2021, um estudo sobre a implementação de uma renda básica no Brasil. Nesta, propõem três linhas de pobreza alternativas: R$ 178,00 (equivalente ao máximo de elegibilidade do Bolsa Família); 1/4 do salário mínimo (linha de elegibilidade do BPC-LOAS); e 1/2 salário mínimo. Adicionalmente, com base no valor das cestas básicas, divulgado pelo DIEESE e na linha de pobreza de US$ 5,50 PPC ao dia, do Banco Mundial, propõem dois valores de benefício mensal: R$ 480,00 e R$ 550,00. A principal diferença desta para a proposta aqui presente é que a DPU discute um benefício para todas as pessoas, enquanto este texto advoga por um benefício básico familiar e um benefício adicional por indivíduo de até 0 a 17 anos.

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