Por Carmem Feijó e Eliane Araújo
A estabilização monetária alcançada em 1994 foi acompanhada por políticas de liberalização comercial e financeira que se aprofundaram nos anos 2000 e alteraram o perfil de inserção externa da economia brasileira, com importantes consequências tanto para a evolução da estrutura produtiva como para as condições de estabilidade monetária do país.
A maior abertura comercial ocorreu com a manutenção de uma taxa de câmbio real apreciada ao longo dos anos 2000 e grande parte dos anos 2010, o que levou a uma mudança na estrutura de oferta que se distancia cada vez mais da fronteira tecnológica das economias desenvolvidas. A mudança na estrutura produtiva se caracterizou pela desindustrialização prematura e pela especialização da pauta de exportações em commodities. Ambos os fatores contribuem para que a inflação do país seja mais dependente da inflação dos nossos parceiros comerciais, além de sofrer maior influência dos preços das commodities no mercado internacional. O retrocesso de nossa estrutura produtiva nos coloca, assim, mais suscetíveis à pressões de custo advindas do comércio internacional.
Já a abertura financeira elevou os fluxos de capital cuja característica é serem pró-cíclicos e voláteis representando um fator de frequentes pressões sobre a taxa de câmbio e, por extensão, sobre a inflação e as políticas de juros. A importância em se destacar as características da estrutura de oferta da economia brasileira – com um perfil agrário-exportador – e o caráter subordinado da inserção internacional, é trazer para a discussão sobre a gestão da política monetária as especificidades que limitam o funcionamento dos mecanismos de transmissão da política monetária, quando o controle do nível de preços se apoia em um único instrumento – a taxa de juros nominal.
As especificidades de uma estrutura de oferta subordinada crescentemente a potenciais pressões de custos externos fazem com que as mudanças na taxa básica de juros com vistas a administrar o nível de inflação tenham efeitos limitados sobre a queda dos preços. O resultado de elevações da taxa básica de juros para combater uma inflação cuja pressão maior vem do comércio internacional é o aumento da taxa de sacrifício imposta para controlar os preços. Do mesmo modo, a abertura financeira subordinada contribui por tornar a taxa de câmbio altamente volátil, sendo as pressões do câmbio um dos principais mecanismos de transmissão de pressões de custos. Por isso, no caso de uma desvalorização acentuada do câmbio, por força do fluxo de capitais, a pressão sobre o nível de preços doméstico não deveria ser combatida por uma contração da demanda agregada ensejada por um aumento na taxa básica de juros, tendo em vista os efeitos negativos sobre o mercado de trabalho e o balanço patrimonial de unidades produtivas endividadas.
No caso brasileiro deve-se levar em consideração ainda a existência de preços administrados, isto é, aqueles preços que são de alguma forma determinados ou influenciados por um órgão público, como é o caso dos transportes, saúde e cuidados pessoais, habitação, comunicação e outros. Esses preços são pouco sensíveis às condições de oferta e demanda, não se alterando perante mudanças na política monetária. Como no Brasil cerca de 26% do IPCA é composto pelos preços administrados, a política monetária precisa ser ainda mais contracionista para induzir a inflação para a meta estipulada, tendo em vista que essa parcela de preços não responde às mudanças na taxa de juros.
Em suma, quando o processo inflacionário tem origem no lado da demanda, este deve ser controlado por meio da adoção de política monetária restritiva, isto é, pelo aumento da taxa de juros que elimine o excesso de demanda agregada. No entanto, a política monetária restritiva também pode ser utilizada para debelar processos inflacionários que tem origem pelo lado da oferta, embora neste caso, a elevação da taxa de juros não atue sobre as causas que originam a inflação, mas sobre os seus efeitos. A política monetária restritiva, ao reduzir os níveis de atividade e emprego da economia, pode evitar que uma elevação nos custos seja repassada em sua totalidade para os preços, embora não contribua para eliminar a causa do problema que se está tentando solucionar. Quando os choques de preços que recaem sobre a economia se originam de pressões pelo lado da oferta a elevação na taxa de juros torna-se menos eficiente no combate à inflação, ao provocar uma elevação mais que necessária do desemprego e do hiato de produto.
A polêmica sobre o aumento da taxa de juros em março de 2021
A decisão do COPOM na reunião de março de aumentar em 0.75 pontos a taxa básica de juros em plena pandemia da COVID-19 não surpreendeu o mercado financeiro, que já havia manifestado grande preocupação com a elevação do IPCA por força dos preços importados e da elevada desvalorização do real em 2020 e 2021. Com a elevação das expectativas inflacionárias pelo mercado financeiro, a recomendação ortodoxa para fazer convergir as expectativas para a meta de inflação é a contenção do ritmo de atividade (sic!), e assim restringir o repasse das pressões de custo aos preços.
O raciocínio implica uma qualificação. Como apontado por analistas[1], mesmo quando a inflação não tem por causa uma pressão de custo, o Copom deve considerar os efeitos secundários, ou seja, o repasse dos choques adversos em alguns preços ao restante da economia. Se o efeito do choque é temporário, a expectativa de inflação. a médio prazo, não deve mudar muito. Mas se a expectativa de inflação para um ou dois anos à frente subir muito, então o diagnóstico é de que o choque não é temporário, e a taxa básica de juros deve subir.
O ponto a questionar especificamente na decisão de março é sobre como avaliar a formação de expectativas quando o cenário da pandemia é de incerteza absoluta. Ainda não há um consenso entre os especialistas sobre a duração da pandemia dada as novas variantes do vírus associada e a demora no processo de imunização. Por outro lado, o cenário de incerteza econômica causada pela pandemia irá continuar a pressionar os gastos públicos e piorar os indicadores de endividamento público, o que alimenta a narrativa em defesa da política de austeridade. Ou seja, o raciocínio de justificar o aumento dos juros na reunião do COPOM de março de 2021 por conta das expectativas de alta no nível da inflação, é, na realidade, a sinalização para uma escalada de aumento da taxa básica de juros ao longo de 2021. Nesta linha de raciocínio, os questionamentos de dois outros artigos – de J L Oreiro e L F de Paula[2] e de André Lara Resende[3] – bem colocam que a decisão de março aponta para a ‘volta do rentismo’.
Ainda no âmbito dos instrumentos de política monetária encontra-se o forward guidance. Conforme aponta Yellen (2016), forward guidance é uma ferramenta de política monetária usada pelo banco central com o fim de sinalizar a taxa de juros de determinado período e assim guiar a economia de forma que a expectativa seja atendida. Este tem sido um reforço importante ao kit de ferramentas do Banco Central Americano (Federal Reserve – Fed), e tem sido utilizada para fornecer acomodação adicional à política monetária depois que as taxas de juros de curto prazo caíram perto de zero. A forward guidance implicou na orientação estendida de taxas futuras, com o anuncio de que manter as ‘ taxas objetivo’ era manter a taxa de juros de curto prazo mais baixas por mais tempo do que se poderia esperar, pressionando significativamente as taxas de empréstimos de longo prazo.[4]
No caso do Brasil, considerando a contração da economia em 2020 e 2021 e as incertezas em relação a evolução da pandemia, não seria o caso de um forward guidance na direção de manter a queda nas taxas de juros? Ademais, o aumento na taxa de juros afeta diretamente a dívida pública, cujas tentativas de controle recaem basicamente sobre o corte de despesas do governo.
A força do rentismo se faz sentir na pressão sobre a curva longa de juros da dívida pública. Esta, como tem sido apontado, tem subido e rápido. Aqui cabe elucidar que o mercado financeiro é o maior detentor de títulos da dívida pública, e por tabela o público com recursos poupados junto aos fundos de investimento dos bancos e instituições financeiras. Logo, a subida de juros agora e a sinalização de que continuará a subir irá representar, como bem mostrou Andre Lara Resende, uma transferência de renda do setor público para o setor financeiro, com a economia em recessão e sem condições de usar o gasto público com componente de sustentação da demanda agregada.
Desde a crise financeira internacional o arsenal de instrumentos usados pelos bancos centrais dos países desenvolvidos tem sido ampliado. Há um entendimento de que para situações diferentes, deve-se desenvolver novas ferramentas de trabalho. O conservadorismo da orientação da política monetária no Brasil é um ponto fora da curva em relação ao debate internacional sobre política monetária. Assim, as sinalizações de captura do BCB pelo mercado financeiro parecem claras e esta avaliação deveria ser levada em consideração na avaliação das decisões do COPOM.
Com o avanço da desindustrialização e a queda nos investimentos produtivos, o destino da poupança privada é para ganhos rentistas, que no caso do Brasil está concentrada no financiamento da dívida pública. A gestão da política monetária de forma conservadora e anacrônica só deve, à luz dos argumentos levantados, levar a um maior empobrecimento da economia brasileira, com aumento da taxa de sacrifício por combater inflação de custos com instrumentos inadequados, mas defendidos com muita força por rentistas.
Referências
Eric M. Engen, Thomas Laubach, and David Reifschneider (2015), “The Macroeconomic Effects of the Federal Reserve’s Unconventional Monetary Policies,” Finance and Economics Discussion Series 2015-005 (Washington: Board of Governors of the Federal Reserve System, January).
Yellen, J. (2016). The Federal Reserve’s Monetary Policy Toolkit: Past, Present, and Future. At “Designing Resilient Monetary Policy Frameworks for the Future,” a symposium sponsored by the Federal Reserve Bank of Kansas City, Jackson Hole, Wyoming. Disponível em: https://www.federalreserve.gov/newsevents/speech/yellen20160826a.htm
[1] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/nelson-barbosa/2021/03/este-banco-central-merece-um-voto-de-confianca.shtml.
[2] https://valor.globo.com/eu-e/artigo/luiz-f-de-paula-e-oreiro-elevacao-na-selic-pode-sinalizar-a-volta-do-rentismo.ghtml
[3] https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2021/04/01/andre-lara-resende-a-quem-interessa-a-alta-dos-juros.ghtml
[4] A autora aponta estudos que evidenciaram as políticas de forward guidance ajudaram a impulsionar o crescimento da demanda por bens e serviços, reduzir a taxa de desemprego e evitar que a inflação caísse ainda mais abaixo do objetivo de 2 por cento.