Desenvolvimentismo não é gastança


Nelson Marconi

Desenvolvimento, segundo o Aurélio, “é o estágio econômico, social e político de uma comunidade, caracterizado por altos índices de rendimento dos fatores de produção. i.e., os recursos naturais, o capital e o trabalho”. Daí deduz-se que uma teoria desenvolvimentista, e políticas assim intituladas, estão preocupadas com essas questões. Uma vez que essa é uma definição de dicionário, meus colegas economistas dirão que todos somos desenvolvimentistas, pois todos estamos preocupados com o crescimento do país. Sim, todos estamos, mas a percepção que cada grupo tem sobre esse processo, e a forma como ele ocorre, muda muito. Em uma definição mais específica, de caráter econômico, desenvolvimentistas são aqueles que defendem a necessidade do desenho e implementação de uma estratégia de desenvolvimento para o país, elaborada e implementada em conjunto pelo setor público e privado. Neste grupo, certamente também existem nuances e entendimentos distintos sobre a composição de um programa com tais características.

Particularmente, entendo que a opção correta para um país de renda média, tal qual o Brasil, é seguir as características do processo histórico de desenvolvimento – qual seja, o direcionamento da produção a setores que gerem maior valor adicionado por trabalhador e também viabilizem a geração de bons empregos, na quantidade necessária para a população; esse objetivo termina se concretizando quando a população e os políticos decidem defender os interesses nacionais. Acrescento mais dois pontos essenciais para o momento atual: a sustentabilidade ambiental e a redução das desigualdades em seu sentido amplo.

Quais foram os países que melhor lograram esses objetivos, do ponto de vista puramente econômico, nos anos mais recentes? Os países do leste e sudeste asiático, com certeza. O que eles fizeram? Investiram fortemente em educação – o que é obviamente essencial – e no desenvolvimento de tecnologias reversas a início, depois próprias, e o Estado estimulou firmemente a produção privada nos setores entendidos como essenciais ao aumento do valor adicionado per capita, muitas vezes auxiliando financeiramente de forma direta, ampliando a infraestrutura para facilitar a produção e sempre coordenando os interesses públicos e privados, bem como cobrando o alcance de metas e resultados, principalmente associados às exportações. Dessa forma, esses países capturaram boa parte da produção industrial global e se inseriram fortemente no comércio internacional, sempre defendendo seus interesses. Alguns promoveram reformas agrárias; e todos se preocuparam com a estabilidade macroeconômica, isso é, com a necessidade de formar poupança pública, impedir a apreciação de suas moedas (quando deixaram isso ocorrer, perceberam e voltaram atrás rapidamente, vide a Coréia na segunda metade dos anos 90) e financiar os investimentos e as operações do setor produtivo a um custo baixo. Além disso, eles sempre souberam que o aumento da poupança nacional depende principalmente dos investimentos produtivos, pois a maior fonte de poupança de um país são os lucros de suas empresas.

A experiência exitosa deles deveria ser, neste momento, o exemplo a seguirmos, logicamente adaptada às nossas características políticas, geográficas, demográficas e às demandas do mundo atual, que vêm se alterando nos últimos anos. Mas a essência da estratégia está ali. Não fosse a adoção de políticas públicas com as características já citadas, a Coreia, por exemplo, estaria destinada a ser um grande produtor de arroz e não a potência tecnológica que é hoje. Em 1960, a renda per capita naquele país correspondia a 27% da nossa; em 2019, era 2,5 vezes maior. Enquanto eles progridem, nós regredimos em nossa estrutura produtiva – estamos nos tornando novamente exportadores de commodities, algo que já tínhamos superado ao final dos anos 1970.

E por que o setor privado não seria capaz de, sem o auxílio do setor público, chegar neste resultado, já que teoricamente é mais eficiente? Porque o interesse privado é guiado pelo lucro, como não poderia deixar de ser; porém, os setores mais relevantes para o processo de desenvolvimento econômico não são os mais lucrativos em economias em estágios iniciais de desenvolvimento ou, como no nosso caso, com abundância de recursos naturais. Segue daí que o Estado deve participar do processo de desenvolvimento (em cooperação com o setor privado) promovendo as políticas públicas (incluindo a macroeconômica) necessárias para estimular a qualificação da população, a infraestrutura e a produção nos setores que geram mais tecnologia, transbordamentos produtivos, externalidades e empregos de qualidade e na quantidade necessária. Caso contrário, o investimento privado será direcionado apenas aos setores que serão mais lucrativos em função da reduzida competitividade externa ou da disponibilidade de recursos naturais e vantagens comparativas pré-existentes naquele país. Vantagens comparativas podem, e devem ser criadas, principalmente em setores sofisticados; por isso, sob o prisma econômico, uma estratégia desenvolvimentista é essencial.

O novo-desenvolvimentismo, escola teórica à qual me filio, afirma que um equilíbrio macroeconômico que viabilize os setores mais sofisticados (que geram maior valor adicionado por trabalhador) é uma condição essencial para o desenvolvimento. Esse equilíbrio inclui taxa de câmbio competitiva, taxa de juros baixa e poupança pública positiva – isso é, uma quantidade suficiente de recursos para financiar os investimentos públicos, ou pelo menos uma parcela deles. As demais políticas citadas neste texto também são fundamentais, sem sombra de dúvida, mas na ausência de tal equilíbrio macroeconômico, elas se tornam ineficazes e serão desperdiçadas. Não é à toa que as políticas setoriais implementadas na década passada foram tão criticadas; além de falhas na concepção, a meu ver nunca compensariam os desequilíbrios macroeconômicos herdados de anos anteriores, quais sejam, moeda apreciada e juros nas alturas. Isso significa que devemos jogar fora o bebê junto com a água do banho? Certamente que não. Erros foram cometidos, diagnosticados e temos plenas condições de acertar daqui para frente. O setor privado, me desculpem, também erra e nem por isso vai ser execrado ou convidado a não investir mais.

Os economistas liberais, por seu turno, se esforçam para taxar qualquer proposta de aumento de gastos públicos como desenvolvimentista. Nota-se, pelo que expliquei acima, que é uma associação descabida e tendenciosa. Busca-se, com o estabelecimento desse vínculo,  descontruir uma corrente teórica e depreciar as  estratégias de políticas públicas que, adaptadas a cada tempo,  foram sempre adotadas pelos países hoje desenvolvidos desde que passaram a competir entre si, inclusive pelos que se intitulam guardiões do liberalismo (nesse caso, vale a máxima “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”). Há, inclusive, economistas que nunca trabalharam em um setor que produza sequer uma porca ou um parafuso e são pródigos nesse discurso. Se pelo menos se preocupassem em achar formas de financiar os investimentos de longo prazo ainda vá lá, pois pelo menos justificariam a intenção de destruir o BNDES. Mas nem isso.

Situando essa discussão em nosso cenário atual, a suposta elevação de gastos com investimentos públicos que uma ala do governo defende não pode, em absoluto, ser chamada de desenvolvimentista. Ainda que eu concorde que o investimento público deva se elevar, essa decisão do governo, se implementada, não está inserida em nenhuma estratégia de desenvolvimento; até o momento o que conhecemos sobre o assunto é um powerpoint com um slide; e se houver mais que isso, explicitem e venham a público debater com a sociedade, por favor.

Há como elevar os investimentos públicos sem deteriorar as finanças públicas? Há, mas depende de disposição política. Se cortarmos 10% dos incentivos fiscais atuais, instituirmos uma cobrança sobre lucros e dividendos – de forma a taxar os ganhos de capital, como sugere a OCDE em relatório recentemente divulgado[1] – e destinarmos uma parcela mínima, de 5% de nossas reservas cambiais para tal, conseguiríamos instituir um fundo de investimentos públicos, com projetos analisados em conjunto pelos setores público e privado, que poderá inclusive atuar de forma anticíclica e inserida em uma estratégia nacional de desenvolvimento, sem afetar nosso atual déficit público (lógico, para tal a regra do teto de gastos precisa ser modificada, mesmo porque ela se tornará inviável em pouco tempo). 

Concluindo, uma estratégia desenvolvimentista requer, sim, um Estado forte, mas assim definido por possuir poupança pública positiva que permita financiar os investimentos e as políticas necessárias à implementação de uma política de desenvolvimento; não basta um resultado primário que gere uma economia de recursos para pagar as despesas com juros abusivos que o Tesouro, com raras exceções, tem que arcar há anos. Por trás da tentativa de associar o termo desenvolvimentista a qualquer elevação dos gastos públicos, há muitos interesses, e não são os associados à criação de bons empregos em setores que gerem valor adicionado razoável, com certeza.

*Texto originalmente publicado no blog Gestão, Política e Sociedade do jornal O Estado de S. Paulo.

**Nelson Marconi é professor da FGV-EAESP, em São Paulo, e pesquisador visitante da Harvard Kennedy School.

[1] OECD (2020), Tax Policy Reforms 2020: OECD and Selected Partner Economies, OECD Publishing, Paris,

https://doi.org/10.1787/7af51916-en.

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