Teto de Gastos: o desencontro do “mercado” com velhos aliados

Tiago Couto Porto

A conjuntura política e econômica atual reacendeu o debate em torno dos problemas e da viabilidade do Teto de Gastos. No novo contexto, o ‘mercado’ e seus economistas estão se confrontando, não apenas com seus comuns adversários, mas também, com velhos aliados. Além das críticas de economistas heterodoxos (que serão apresentadas ao longo do texto), os movimentos para prorrogar o auxílio emergencial, aprovar o plano Pró-Brasil de Infraestrutura e criar o Renda Brasil indicam que o governo do presidente Jair Bolsonaro tentará criar mecanismos para burlar ou modificar o Teto.

Se não bastasse, a reportagem da revista The Economist do dia 25 de julho deixa claro que programas de ajuste fiscal estão sendo totalmente rejeitados pelos principais economistas e formuladores de políticas econômicas do mundo. Aparentemente, deixaram de existir tanto o endosso de importantes economistas e instituições estrangeiras, quanto do Governo Bolsonaro – antigos aliados -, reduzindo assim a capacidade do ‘mercado’ de impor a sua agenda.

Este artigo buscará, de maneira didática, explicar a) o funcionamento do Teto de Gastos e seus principais efeitos, b) os principais argumentos teóricos que justificam a implementação desta política, c) as principais críticas e alternativas que estão sendo debatidas, d) como o contexto da pandemia se insere no debate, para ao final e) deixar perguntas e caminhos que gerem reflexões e propostas alternativas.

O Teto de Gastos ou Emenda Constitucional 95 (EC 95) busca estabelecer um limite ao gasto público, determinando que as despesas e os investimentos públicos não podem ultrapassar os valores do ano anterior corrigidos pela inflação. O Teto foi criado em 2016, sob o governo Temer, em um contexto em que a retórica dominante atribuía ‘o aumento desenfreado’ do gasto público durante o Governo Dilma como a principal causa da crise econômica e política que se consolidava no período. Mas quais foram as justificativas teóricas para uma política tão rígida e quais foram os efeitos do Teto até agora?

Os economistas liberais afirmam que o Teto de Gastos reestabeleceu a confiança dos agentes no governo e no seu compromisso com a sustentabilidade das contas públicas, fazendo com que houvesse uma queda na taxa básica de juros (SELIC) para sua mínima histórica (2,0 % ao ano). Para eles, por um lado, o aumento da dívida pública em relação ao PIB provoca uma desconfiança sobre a capacidade de pagamento do país, culminando em aumento do juros. Por outro lado, o equilíbrio das contas públicas gera uma redução da taxa de juros e uma melhora na confiança privada que garante um aumento nos investimentos e assim, do crescimento. Concluem que a quebra do Teto seria responsável por gerar “… desconfiança no mercado sobre a solvência nacional, pressionar inflação e juros e solapar o tão almejado crescimento sustentável”.

Enquanto isso, muitos economistas argumentam que a causa da queda do juros está associada a brutal recessão que estamos passando, que reduziu a utilização da capacidade instalada a patamares mínimos e levou a inflação atual para baixo do piso da meta[1], afirmando ser insustentável a atribuição da queda do juros ao Teto de Gastos.

Além do debate em torno da taxa de Juros, há ainda outros aspectos e críticas pertinentes ao Teto de Gastos. Primeiro, ao desconsiderar o crescimento populacional, o Teto de Gastos pode reduzir o gasto per capita, com educação e saúde, por exemplo. Segundo, para além do gasto per capita, há também uma desvinculação das receitas destinadas a saúde e a educação. Se antes a Constituição determinava que percentuais fixos das receitas fossem investidos nessas duas áreas, a EC 95 determina que ambas terão como piso o gasto em 2017 reajustado pela inflação. Ou seja, o gasto mínimo com saúde e inflação será congelado no patamar de 2017. Terceiro, como há gastos que são obrigatórios, como salários de servidores e aposentados que continuam crescendo, sobra cada vez menos espaço para o investimento público. Quarto, o Teto de Gastos incorpora metas em excesso apesar da insuficiência de instrumentos fiscais para cumpri-las, minando sua própria credibilidade e viabilidade. Por fim, impossibilita uma das principais funções da política fiscal: atuar de maneira contra cíclica. A crise sanitária e econômica que estamos vivenciando, que exigiu um aumento no gasto do governo com saúde e com programas de distribuição de renda, entre outros, evidencia como o caráter contracíclico é um aspecto central para uma política fiscal.

O debate, contudo, não se restringe as possíveis deficiências do Teto de Gastos ou sua provável flexibilização, mas é amplo e abarca toda uma rediscussão da teoria macroeconômica dominante. O Teto de Gastos tem a preocupação específica de reduzir o gasto público em relação ao PIB, contudo, uma política com efeitos tão impactantes e duradouros para economia deveria ser pensado à luz da crítica macroeconômica atual.

A recente reportagem publicada na edição de julho da insuspeita Revista The Economist – The covid-19 pandemic is forcing a rethink in macroeconomics – mostra o recente debate e as principais opções macroeconômicas discutidas pelos mais reconhecidos formuladores de política econômica e por alguns dos mais renomados acadêmicos da área da macroeconomia. Segundo a matéria, o debate está circunscrito a três principais propostas: a) intervenção generalizada do Banco Central nos mercados de ativos, b) aumentos contínuos da dívida pública e c) uma reestruturação profunda dos mercados financeiros.  

O primeiro tipo de política, defendida pelo ex-presidente do FED Ben Bernanke, entre outros, argumenta que a política monetária seria suficiente para combater a recessão, uma vez que, se os bancos centrais podem imprimir moeda para comprar ativos, eles são capazes de impulsionar o crescimento econômico e a inflação.

Por outro lado, nomes como Christine Lagarde, Larry Summers e Olivier Blanchard, argumentam a favor do uso de políticas de estímulo fiscal. Explicam que se as taxas de juros permanecerem menores do que o crescimento econômico nominal, então uma economia pode crescer e controlar a dívida sem nunca precisar funcionar com superávit orçamentário.

Na mesma linha, mas partindo de perspectivas teóricas distintas, diversos economistas heterodoxos, defensores da Modern Monetary Theory (MMT), argumentam que países que emitem sua própria moeda não devem se preocupar com o aumento da relação dívida PIB e podem contar com o Banco Central para conter a dívida pública, se esta for denominada em moeda nacional. Desta forma, teriam espaço para realizar déficits fiscais contínuos até o desemprego e a inflação voltarem ao normal.

Por fim, o terceiro tipo de política econômica defendido se concentra nas taxas de juros negativas e seria a mais radical. Seus proponentes veem o estímulo fiscal, seja financiado por dívida ou pela criação de moeda do banco central, com desconfiança, pois ambos deixam as contas para o futuro. Desta forma, seus defensores, como Gertjan Vlieghe do Banco da Inglaterra, argumentam que a melhor maneira de estimular economias em uma base contínua não é criar contas sem fim a serem pagas quando as taxas voltarem a subir, mas sim, manter taxas de juros negativas. Entretanto temos ainda um ponto central a considerar: Políticas econômicas pensadas para países desenvolvidos valem para todas as economias?  Qual tipo de política macroeconômica tem gerado maior interesse e discussão no país?

No Brasil, como alternativa a políticas liberais de ajuste fiscal, o debate se concentra no segundo tipo de política abordado na reportagem descrita, qual seja, o uso de déficits públicos como necessário para se estimular a economia em tempos de crise (e/ou para promover crescimento) e garantir condições sociais mínimas à população.

Por um lado, alguns economistas acreditam que o governo pode sim se endividar em moeda nacional, e manter déficits públicos sem maiores consequências e custos, enquanto a inflação e o desemprego não estiverem em níveis aceitáveis. Portanto, o Teto de Gastos deveria ser extinto.

Por outro lado, outros economistas, concordam com as críticas ao Teto de Gastos, e que o contexto atual exige uma política fiscal contra cíclica e, portanto, de déficits públicos. Contudo, não concordam que o endividamento (mesmo em moeda nacional) não gere custos futuros para o país e, portanto, propõem alternativas complementares para o financiamento deste déficit. Além disso, não concordam com a extinção do Teto, mas apoiam sua revisão, e ou, medidas fiscais alternativas.

O contexto atual de enorme crise econômica e sanitária exige ainda mais o entrelaçamento de questões econômicas e sociais, e que temas de política pública sejam tratados com as complexidades que uma sociedade como a brasileira exige. Portanto, longe de apresentar respostas ou propostas definidas, debater caminhos que possam ser consensuais e, quem sabe, viáveis, é essencial.

Dentro das propostas de políticas fiscais já apresentadas no debate público, acredito que estes pontos são centrais: a) Os gastos per capita com saúde e educação devem ser, ao menos, constantes (e/ou crescer na mesma proporção que o PIB); b) Separar o investimento público do gasto corrente, c) Priorizar restrição e reformulação da remuneração dos altos cargos do serviço público, d) Uma política fiscal não deve se basear apenas no gasto público, mas também levar em conta sua receita, seu custo de financiamento e o endividamento do país, e) deve ser contra cíclica.  

Estamos presenciando um daqueles momentos em que as expectativas e cálculos econômicos e políticos convergem. Economicamente, por conta dos problemas que foram apontados ao longo do artigo, o Teto se mostra inviável.  Ao mesmo tempo, é politicamente contraproducente, e o presidente Bolsonaro já tomou conhecimento disso. Já há propostas do governo que defendem a criação de gatilhos, similares aos já existentes na Emenda Constitucional 95, como o congelamento de salários de servidores, o impedimento à concessão de reajustes de salário mínimo, entre outros. Uma regra é elaborada para ser cumprida, e o uso constante dos gatilhos não parece trazer credibilidade à regra, além de não preservar a eficiência do serviço público.

Em um contexto em que os democratas e a esquerda têm muito pouco espaço para avançar, mas muito o que preservar, um debate e a tentativa de convergência em torno de alguns pontos centrais para a política fiscal é um começo essencial para quem pretende influenciar nesta agenda.


[1] A meta instituída pelo Conselho Monetário Nacional é de 4,0% com intervalo de tolerância de +- 1,5 ponto percentual. A média dos núcleos de inflação atingiu 2,0% no acumulado dos últimos doze meses (agosto 2019 – julho 2020) (RAF43, IFI, p. 14)

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