A alta volatilidade e as economias bipolares

Por Danilo Spinola

Neste texto proponho um breve paralelo entre o corpo biológico e o social para explicar volatilidade, um tema central do desenvolvimento latino-americano.

Na psicologia, um dos distúbios mais comuns é o transtorno de bipolaridade, marcado por alterações psicológicas do paciente entre períodos de mania e depressão. A mania é marcada por elevada euforia, energia, felicidade. A depressão, pela crise, melancolia. Uma pessoa diagnosticada com bipolaridade, em seus diversos graus, mostra mudanças incomuns no humor e dificuldade de realizar atividades. A oscilação é a marca dessa doença. Uma das principais raízes é de ordem genética, desenvolvida na constituição do indivíduo, podendo ser desencadeada por situações extremas como o alto estresse. A bipolaridade afeta o desempenho, além de criar riscos, pensamentos negativistas e dificuldade de socialização.

Assim como é comum nas analogias econômicas e sociais, um distúrbio tão relevante pode nos servir para compreender o comportamento de um corpo social. O uso da bipolaridade, com suas causas estruturais, serve para ilustrar o problema central da alta volatilidade, tema comum em nossas economias latino-americanas. Deve-se destacar que, assim como em indivíduos considerados normais, a oscilação está presente em todas as economias. No entanto, é a intensidade da volatilidade que caracteriza a presença ou não de um transtorno.

A região latino-americana tem em sua formação institucional um comportamento de alta oscilação, em que períodos de elevado crescimento geram um comportamento maníaco, impulsivo, em que a sociedade se comporta em euforia. De forma sucessiva, aparecem períodos de depressão, de crise e desorganização do sistema, com impactos profundos na economia, no emprego e na desigualdade. Assim como para um indivíduo bipolar as oscilações afetam sua condição de vida, é preciso destacar que as oscilações econômicas não são neutras ao desenvolvimento de longo prazo. A presença desse comportamento é sim prejudicial para a estrutura da economia, causando um efeito identificado como histerese, em que a alta volatilidade impacta no desenvolvimento das estruturas, como a especialização produtiva e o reforço da desigualdade.

Cabe separar as causas da volatilidade entre aquelas de origem externa daquelas internas. Como indivíduos, podemos ter rápidas e amplas variações no humor relacionadas a elementos alheios à nossa constituição, como uma grande frustração: o desemprego, a perda de uma pessoa querida. Já uma economia pode entrar em crise por um elemento exógeno: uma pandemia, um desastre natural, a forte caída nos preços dos produtos em que ela exporta, ou até mesmo uma guerra. É importante, no entanto, destacar que os efeitos de choques externos são mediados também por questões internas, já que corpos sociais distintos apresentam graus diferentes de resiliência e fragilidade.

Por outro lado, as causas internas, endógenas, são aquelas que resultam da organização do corpo. No caso social, são originadas pela constituição histórica e estrutural. Assim como o DNA, as formas institucionais, geradas na formação de uma sociedade, como a colonização, a desigualdade, o modo de produção, trazem elementos que caracterizam a dinâmica do sistema, originando os problemas estruturais que causam a alta volatilidade endógena.

O resultado final dos efeitos que levam às oscilações, seja de um corpo individual ou social, é assim uma conjunção entre o padrão de fragilidade a choques externos com o comportamento endógenos do corpo.

Um indivíduo precisa de estabilidade para desenvolver suas atividades com êxito. O processo de desenvolvimento de uma economia também exige continuidade. Uma onda de investimentos necessita um fluxo constante de financiamento até sua maturação. A construção de capacidades demandam largos gastos em educação, e é preciso manter tais gastos por uma geração para se formar profissionais qualificados. A transferência de tecnologia demanda certo grau de certeza nos preços externos, como a taxa de câmbio, para não ser interrompida.

Na presença de alta volatilidade, os avanços são paralisados.

A volatilidade endógena e a fragilidade tornam inviáveis a constituição de medidas de longo aspecto temporal. O resultado é o interrompimento intermitente de estratégias de desenvolvimento. Proliferam-se obras inacabadas. Com a crise, interrompem-se ou fragilizam-se os estudos, principalmente daqueles alunos em maior situação de carência. Há o fechamento de universidades. Vê-se a falência de pequenos e médios negócios. Isso tudo ocorre em simultaneidade a  uma crise externa e fiscal que leva a reações de ajuste, que só reforçam os problemas.

O ajuste econômico na crise pode funcionar como uma saída descabida. Seria como, em uma fase de depressão profunda, o paciente bipolar ajustar o seu convívio social isolando-se no seu quarto como medida de proteção, o que só tende a aprofundar o problema.

Outro aspecto da bipolaridade que pode ser utilizado como analogia é a naturalização do transtorno, ou até mesmo a culpabilização do paciente. Passa-se a considerar a condição do paciente em seu meio social como uma falha de caráter. O paciente se sente culpado por sua própria condição. Algo similar ocorre em termos do corpo social ao naturalizar-se a alta volatilidade, como culpa da nossa incapacidade, uma síndrome de vira-lata. Assim, rejeita-se a busca pela correção do problema, e o comportamento de negação é avesso à necessidade de se endereçar as debilidades estruturais.

O tratamento para bipolaridade consiste em estabilizar o sistema por meio do uso de medicamentos como antidepressivos, além de ajuda psicológica, e da manutenção de um estilo de vida saudável. Novamente, pode-se fazer a analogia com o corpo social. Para tratar a volatilidade endógena de um sistema econômico é preciso se focar em sua estabilização por meio da constituição de estruturas mais sólidas e de mecanismos anticíclicos.

Infelizmente, o consenso imposto pela financeirização alterou o foco do tratamento. Tendo o caso brasileiro como referência, a priorização do controle inflacionário por meio de orientação de políticas fiscais e monetárias resultou em um manejo que de fato aprofundou os efeitos negativos da volatilidade sobre a estrutura. Observa-se tal movimento desde a estabilização monetária e o novo consenso macroeconômico imposto nos anos 1990. A conjunção de altos juros, superavit primário e câmbio valorizado pode ter ajudado a colocar a inflação próxima à meta, porém com efeitos importantes na perda de competitividade de setores intensivos em tecnologia. Até mesmo no recente período de crescimento dos anos 2000, com elevação dos preços das commodities, o resultado foi uma política econômica que, por mais que tenha tido efeitos de redução de pobreza, o fez de forma pouco sustentável. As estruturas produtivas se especializaram. Os grandes investimentos, a formação de conglomerados nacionais, e a capacitação (como o programa Ciência Sem Fronteiras) avançaram de forma intermitente, e se interromperam assim que a mania virou depressão.

Ainda sobre o Brasil, a crise atual se pautou no reforço da depressão, com a contração de gastos em um momento que demandavam políticas anticíclicas. Além disso, têm-se problemas exógenos, como a perda de credibilidade dos conglomerados nacionais por meio de investigações da Lava Jato, e dos desdobramentos da política interna com o processo de impeachment. A crise hoje chega ao pior momento com a pandemia do COVID-19, certamente o maior choque exógeno da história recente do país.

A superação da alta volatilidade é a única forma de permitir um avanço estável e inclusivo no processo de desenvolvimento econômico. As medidas necessárias para estabilizar o sistema devem utilizar das políticas econômicas, seja fiscal, monetária e cambial, como tratamento à alta volatilidade. Por um lado, é preciso ter um manejo macroeconômico e de política industrial/tecnológica que promova a competitividade. Por outro, controlar os impactos redistributivos, desenvolvendo uma ampla estrutura de proteção que envolva direitos e garantias de saúde, educação e proteção ao emprego. Ao mesmo tempo, é fundamental endereçar os problemas de economia política e dos grupos de poderes, neutralizando o comportamento maníaco durante a boom, e gerando um escudo de proteção na crise. Dessa forma, é preciso um amplo projeto de desenvolvimento que fortaleça as estruturas e trate da alta volatilidade para que a economia possa superar esse transtorno que só reforça a fragilidade estrutural da economia.

Assim sendo, a estabilização do indivíduo não garante que as oscilações desaparecerão, ou que não haverá crises agudas. No entanto, com fortalecimento da estrutura, ela garante menor volatilidade e maior resiliência a eventos extremos. O desenvolvimento individual e a saúde precisam de estabilidade, já um corpo social, a economia de país, não pode ter um processo inclusivo de crescimento enquanto mantiver tão alta volatilidade. É preciso estabilizar e superar o transtorno de bipolaridade do corpo social, para assim desenvolver um processo virtuoso de longo-prazo que permita a superação de importantes armadilhas ao desenvolvimento.

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