Breves notas sobre o descaminho de uma nação

Por Ricardo Carlos Gaspar*

E a gente fica esperando

Uma coisa, uma coisa

 Que eu não sei o quê…

Lô Borges, Aos barões (1972)

O ideário e a prática desenvolvimentistas, que legaram ao Brasil uma estrutura produtiva industrial moderna e diversificada, foram abandonados a partir da década de 1980. Com eles, os projetos de construção nacional ou estratégias de longo prazo, bem como qualquer debate acerca do que almejamos para o futuro do país, sumiram do radar. A exceção, durante os últimos quarenta anos de tantas mudanças no mundo, foi o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado em 2007, no início do segundo mandato presidencial de Luís Inácio Lula da Silva, com alguns resultados positivos, mas desidratado poucos anos após seu lançamento, devido a problemas políticos e econômicos que comprometeram sua operacionalização. Muito pouco para neutralizar a tendência geral apontada. 

Os custos dessa desconstrução são cada vez mais altos. A opção política da substituição da vertente desenvolvimentista pela gestão imediatista, neoliberal, de predominância financeira, comprometeu o futuro do país e suas novas gerações. Ao mesmo tempo, as dificuldades para se empreender uma retomada tornam-se mais complexas e as resistências a ela mais solidificadas. De igual modo, a formação dos consensos que constituem a sua base, numa sociedade esgarçada e utilitarista, se apresenta mais difícil de forjar, na prática e no imaginário popular.

Ao longo dos sucessivos mandatos presidenciais de Lula (2004-2011) e Dilma Rousseff (2012-2016) foi implementado um conjunto de ações redistributivas, cujos impactos prevaleceram enquanto as condições macroeconômicas internas e externas lhes foram favoráveis. Mas tais políticas públicas não se consubstanciaram propriamente em reformas, muito menos estruturais, pois descontinuadas no tempo e isentas de raízes institucionais. Sequer implicaram alterações nos regimes de propriedade, na malha tributária, na organização do Estado ou no mecanismo político de relações intergovernamentais e do governo com a sociedade civil.

A verdade é que, no curso da experiência do Partido dos Trabalhadores (PT) – desde sua fundação, em 1979 -, o objetivo do poder central foi ficando mais nítido, sem que se elaborasse um programa coerente de reformas e um projeto de nação. Este, por sua vez, jamais pode ser obra de iluminados, mas fruto de um esforço coletivo de reflexão, sob o parâmetro de estudos e prospecções calcados em conhecimento científico da realidade e seus potenciais de transformação. À falta disso, as políticas efetivamente praticadas pelo PT no exercício do poder, que passaram a abranger prefeituras importantes, governos estaduais e, a partir de 2004, o poder federal, ficaram perigosamente indeterminadas, podendo comportar desde laivos esquerdistas (minoritários) até pragmáticas guinadas liberais (e neoliberais), estas crescentemente adotadas.

O resultado foi que o Brasil continuou numa trajetória de inequívoca desindustrialização e atraso científico e tecnológico, abraçando-o já há quatro décadas. Cabe frisar que a indústria, pelas suas características de escala, produtividade, geração de inovações e difusão tecnológica, capacidade de multiplicar empregos e pagar melhores salários, é um elemento insubstituível nas estratégias de desenvolvimento. Na atualidade, é preciso destacar: não qualquer indústria, mas sobretudo indústrias e serviços intensivos em conhecimento.

Assim, as circunstâncias externas prevalecentes ao longo de parte da primeira década deste século contribuíram para o sucesso temporário da aposta petista e das “coalizões” que lhes davam suporte. Contudo, as bases dessa melhora eram frágeis internamente, e efêmeras no plano externo. O jogo pragmático do “ganha-ganha” do governo brasileiro preservou elevadas taxas de juros e a transferência de expressivos montantes da riqueza do país para o setor financeiro. O crescimento da economia permitiu acomodar interesses bastante heterogêneos. Com a reversão do quadro, o balanço político sofreu uma guinada radical. Junto com erros na condução econômica e uma gestão política problemática, a elite brasileira mudou rapidamente de postura e decidiu alijar de vez seus incômodos “aliados”. Do ponto de vista dos artífices dessa escalada, é mister reconhecer que ela foi coroada de êxito, pois todos os atos conduzidos pelos golpistas, sem exceção, tiveram desfecho conforme programado.

Contudo, os resultados reais dessa ofensiva revelam o absurdo da situação produzida. No plano econômico, recessão, desemprego, contínua frustração dos resultados pretendidos.  Serviços públicos sucateados. Privatização irresponsável do patrimônio público. E sem perspectiva de uma sólida recuperação no horizonte próximo, pois nossas elites são muito hábeis em construir cenários capazes de lhes dar retorno imediato. Já quanto ao longo prazo, isto é, projeto de país, inserção competitiva no mundo, prioridades estratégicas, incorporação de “excluídos”, formação de lideranças…, as classes dominantes brasileiras são de uma indigência histórica abissal. Uma outra face do “espírito nacional”: cinismo, demagogia, aversão ao povo.  

Como resultado, e em face da ausência de lideranças novas e propostas consequentes no campo conservador (e na esquerda também), a extrema direita saiu definitivamente do armário. E constitui uma força relevante no embate político atual no Brasil, assim como em muitas partes do globo. Porém, a agenda conservadora, ao fim e ao cabo, pode se voltar contra os próprios interesses das elites, ao postergar o enfrentamento de problemas históricos do desenvolvimento nacional.

A crise sem precedentes que a pandemia da COVID-19 provoca, no mundo e no Brasil, exacerba as tendências de instabilidade da economia brasileira, cuja recuperação, antes mesmo da pandemia, já era fraca para prever horizontes mais favoráveis. Resta para nós encarar os enormes desafios ligados à necessidade de recuperação, em novas bases, do papel do Estado na economia – e da função do gasto público -, como suporte indispensável à formulação de programas sustentados de desenvolvimento econômico, bem como para o combate à desigualdade, em um ambiente de rápida mudança nos padrões do trabalho e no perfil dos empregos. Tudo isso em um quadro internacional dominado pela incerteza. Seja no Brasil, seja no mundo, o encaminhamento desses conflitos (e de outros aqui omitidos, mas não menos relevantes, como a democracia e o meio ambiente) é uma questão em aberto, cujos desdobramentos incorporam agudo conteúdo político.

(*) Professor do Departamento de Economia da FEA – PUC-SP e Pesquisador do Observatório das Metrópoles/SP.

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