A pandemia escancara nossas desigualdades no mercado de trabalho (2)

Por Nelson Marconi

Na semana passada nosso blog publicou a primeira parte deste artigo que discute como a desigualdade amplifica os impactos da epidemia sobre o mercado de trabalho. Nesta segunda parte, vou discutir algumas questões que deixei em aberto. A análise vai estratificar os principais grupos de ocupações associados aos setores em que as pessoas atuam. Ao avaliar conjuntamente ocupações e setores, podemos levantar alguns indícios da influência da estrutura produtiva sobre a desigualdade e a composição das ocupações/empregos em nosso país.

O levantamento baseado na PNAD Covid-19 de junho de 2020 demonstra que 20 ocupações, por sua vez associadas a setores de atuação específicos, respondem por 48% do mercado de trabalho. É uma concentração razoável, e vamos considerar todas as demais ocupações em um grupo único para efeito de comparação. Primeiro, salta aos olhos que as ocupações mais frequentes, com exceção de professores, requerem baixa qualificação e estão associadas a atividades/setores menos sofisticados; dessas 20 ocupações/setores de atuação, apenas três se diferenciam, considerando como parâmetro de comparação o índice médio de escolaridade de seus ocupantes – professores, médicos e outros profissionais de nível superior atuando nas  respectivas atividades (7,4% do total de ocupações/setores).

Dentre essas 20 ocupaçõe/setores (doravante grupos), somente os professores e outros profissionais de nível superior apresentam um percentual considerável de pessoas que estão trabalhando em home-office durante a pandemia; parece que, para termos um número maior de pessoas afastadas trabalhando em suas residências, a composição dos empregos/setores teria que ser, previamente à pandemia, distinta. 

As perdas salariais foram mais significativas para aqueles grupos em que a taxa de informalidade é maior e esta última, por sua vez, também é mais elevada para os menos escolarizados. Os três grupos mais numerosos dentre os ocupados (agricultores, empregados domésticos, pedreiros e correlatos, que constituem 16,3% do total de ocupados) atendem a estas características. É interessante notar que, contudo e felizmente, os maiores percentuais de pessoas que residem em domicílios que recebem o auxílio emergencial estão entre aqueles que sofreram maior redução salarial após o início da pandemia.

As ocupações que mais mudaram seus locais de trabalho após o início da pandemia também apresentam elevadas taxas de informalidade, e as ocupações que demandam menor qualificação e com maior taxa de informalidade também se destacam entre as que enfrentam o isolamento social sem receber remuneração. Novamente, a correlação entre estes últimos e os que residem com pelos menos uma pessoa (pode ser o próprio entrevistado) que receba o Auxílio Emergencial é elevada.

Com a análise desses números, podemos confirmar que os mais prejudicados dentre os ocupados no mercado de trabalho são os que realizam atividades menos qualificadas em setores também menos sofisticados tecnologicamente. Os impactos são absolutamente distintos quando comparamos os números relativos às três profissões mais qualificadas com as demais (7,4% dos ocupados) com tal grupo. Vale também notar que na indústria de transformação – com exceção de artesãos, costureiros e sapateiros – os trabalhadores foram aparentemente prejudicados pela epidemia, até porque o seu vínculo é mais formalizado.

Portanto, cabe perguntar: nosso mercado de trabalho poderia ter sofrido um impacto menor da pandemia? Certamente, não apenas devido à ausência de políticas públicas complementares, mas também devido à estrutura prévia do mercado de trabalho, desigual e com a predominância de muitas ocupações/setores precários. Ingressamos mal no combate à pandemia, não apenas pela incompetência de nosso governo, que é grande, mas também pela própria composição prévia das ocupações em nosso mercado de trabalho.

Haveria possiblidade de ser diferente? Certamente, e assim esperamos que seja no futuro, mas essa mudança só ocorrerá a médio prazo, à medida que nossa estrutura produtiva for se sofisticando – o que requer um direcionamento da política econômica e das políticas públicas muito distinto do atual – e criando ocupações que demandem maior qualificação e vínculos mais formais de trabalho. Quem sabe assim poderemos enfrentar em melhores condições uma eventual nova pandemia nos anos vindouros.

TABELA 1

TABELA 2

TABELA 3

TABELA 4

*Nelson Marconi é professor da FGV e pesquisador visitante na Harvard Kennedy School.

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