Pós-pandemia

Por José Francisco Lima Gonçalves

Os próximos meses serão ocupados pela reforma tributária e pela política fiscal. A primeira, complexa e urgente, veio fatiada e, como na reforma da previdência, o resultado deve ser de regras com impacto econômico imprevisível, mas capaz de acalmar os ânimos.

Ânimos a serem acirrados pelo tema correlato da política fiscal. A intenção do governo de voltar ao orçamento pré-pandemia coincide com a expectativa de parte predominante dos analistas e participantes do mercado.

Mas o assunto, seja com feridas da discussão não interrompida sobre o teto de gastos, ou “apenas” reconhecendo que a recessão não será superada a não ser por recuperação modesta, já aparece em acenos de insuspeitos adeptos do “ajuste fiscal”.

O ambiente global às vésperas da crise 2007-08 era um auge, com anos de crescimento forte, firme demanda chinesa, commodities à toda, juros baixos por vários anos, longo ciclo imobiliário com as hipotecas fundeando CDO’s até o paroxismo. A crise financeira criou grave recessão e inédita reação da política fiscal e monetária.

Do lado fiscal, o inédito foi menos a expansão dos gastos e mais a rapidez com que os governos agiram. Do lado monetário, a inédita expansão dos balanços dos principais BCs, o reconhecimento de que seria preciso fazer “whatever it takes”…

A saída foi predominantemente vista com a receita de austeridade fiscal ainda que com expansão monetária, pois, apesar de juros básicos baixos, governos de economias mais frágeis pagavam juros mais altos. A novidade criou a expressão “New normal”, crescimento baixo, inflação baixa, juros baixos, desemprego baixo. A contrapartida, dez anos de valorização de ativos de risco.

Aqui, a política contra-cíclica ajudou o retorno rápido da atividade, levando ao limite o ciclo de duráveis viabilizado pela mudança no mercado de trabalho, pela transferência de renda e pela expansão do crédito. Na valorização do real e na concentração de esperanças no pré-sal. No recurso a instrumentos contra-cíclicos em momento de auge, no conflito entre real e mercado de trabalho fortes com a indústria e os investimentos.

Chegamos ao fim dos dez anos de “New normal” tentando sair da recessão ou da depressão com política fiscal contracionista e desinflação acelerada, apesar da política monetária expansionista ou estimulativa. E mais, taxas de juros pró-cíclicas para investimentos privados e corte do investimento público. Finalmente, crença na agenda da produtividade como esteio do crescimento e nas “reformas destinadas a abrir espaço para o setor privado investir”.

Bem diferente de 2017, o mundo de 2020. A desaceleração global trazia risco de recessão na Europa e nos EUA, a China desacelerava, os preços das commodities vinham cedendo desde 2013 e, passado o efeito pontual da “supply side” de Trump, os bancos centrais reduziram novamente os juros e aumentaram as compras de ativos.

Aos dez anos de alta das bolsas somou-se novo impulso, a alavancagem geral de posições de risco ilustradas pela explosão dos CLO’s, os instrumentos de liquidez volátil da vez. Agora, o endividamento é geral, não concentrado.

Diferente também o início da crise, com o colapso físico da atividade que interrompeu os fluxos da economia global, em simultâneo com a busca pela liquidez e abandono do risco. O colapso mostrou a fragilidade das cadeias globais e das relações especializadas entre exportadores de primários e de bens manufaturados.

E pôs em xeque, com a interrupção dos fluxos e os ajustes instantâneos nos balanços, a capacidade de recriação dos empregos destruídos e a baixa inadimplência das famílias e empresas. Uma empresa que fecha é sinal de que não pretende contratar trabalho e fornecedores tão cedo.

A virada de ano já mostrara que teríamos um 2020 de pífio desempenho da economia. Depois dos dois anos de recessão, três anos de magros 1% ao ano. Inflação em queda. Desemprego elevado, qualidade da ocupação medíocre. Política fiscal contracionista desde 2015. Déficits primários consistentes. Conta corrente piorando rapidamente. Juros em queda. Dólar em persistente valorização. Bolsa alta com viés de alta.

Lá fora, a superação dos efeitos imediatos da pandemia, além de incerta em si, dar-se-á “de volta” a uma economia que vinha piorando. À incerteza crescente de janeiro, soma-se a crescente incerteza sobre a recuperação “automática”, fortalecendo o Fed: juros muito baixos por muito tempo.

A Europa é risco forte, dada a herança da recessão atual sobre o Euro. A recente criação de um fundo de reconstrução na União Europeia pode ser uma ruptura histórica no desenvolvimento de mecanismos de comunicação entre o euro e os orçamentos nacionais. O esforço do ECB na sustentação das economias “periféricas” pela compra de títulos públicos talvez tenha apoio fiscal.

E não parece razoável esperar da China que saia da trajetória anterior apenas porque, por suposto, teria controlado o vírus.

A crise da pandemia tem tido componentes políticos e administrativos grotescos, o que só acrescenta à incerteza inevitável. Em ritmo lento, o governo tomou medidas fiscais de emergência para defender a renda das famílias e o caixa das empresas. E, na medida em que política creditícia funciona em colapsos, o BCB liberou limites para os bancos criarem crédito. O que não aconteceu, sem surpresa.

O programa emergencial tem data para acabar e a ideia é o orçamento voltar no tempo e basear-se em demandas de tempos de outras cóleras que não a do Covid19.

Já havia demandas reprimidas. Já estava claro que o setor privado não investiria em economia sem perspectiva de crescimento. Já vivenciamos a saída brutal de capital nos últimos dois anos. Já havíamos feito uma reforma da previdência que legou um número de “economia” suficiente para acalmar os ânimos e deixar claro que haverá outra.

Absorvidos os choques de preços administrados, de alimentos e cambiais de 2015, outros choques cambiais não fizeram acelerar a inflação. O Copom mostrou isso em dois momentos críticos recentes.

Qual a chance de corte das transferências emergenciais em setembro ser seguido de recuperação da renda do trabalho? Salto irresponsável no escuro? Como acreditar que a economia voltará ao “normal”? Qual normal? O de 1% ao ano?

Moeda é confiança, crédito. Quem vai acreditar que a confiança volta se o governo disser que vai voltar ao passado em 2021?

Reza o bordão: é preciso uma âncora fiscal crível. Cai a ficha: já tem gente lembrando de que a relação dívida/PIB tem um denominador.

*José Francisco de Lima Gonçalves é economista chefe do banco Fator e professor do Departamento de Economia da FEA/USP.

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