Celso Furtado, Subdesenvolvimento e a Educação

Por André Roncaglia e Fernanda Cardoso

Hoje, 26 de julho de 2020, celebramos o centenário do nascimento de Celso Furtado. Nos últimos dias, uma série de reportagens e webinários buscou avaliar as contribuições do grande intelectual e homem público brasileiro. A sua contribuição teórica tinha como finalidade a transformação da sociedade que ele tão bem interpretou.

Neste texto, colocaremos em relevo um aspecto de sua obra que tem sido alvo de sistemáticos equívocos: a suposta ausência de uma defesa da educação como aspecto relevante para a construção do desenvolvimento. Em alguma medida, o equívoco se explica pelo fato de que, para pensadores estruturalistas como Furtado, a preocupação precípua estava sobre a consecução da matriz produtiva, o perfil do emprego gerado e a maneira como se distribuía o excedente econômico. Por outro lado, daí a inferir que autores como Furtado não se preocuparam com a educação é demasiado errôneo.

O posicionamento progressista tem vários matizes e sua agenda política é guiada pelas premências de cada período histórico.

Mas, é certo, uma agenda progressista sempre defende a democratização da liberdade de escolha de todos os cidadãos, e não apenas para uma fração abastada da sociedade. A pobreza e a desigualdade extremas impõem severas limitações ao espaço decisório dos 90% na base da distribuição da renda e da riqueza no nosso país. A estratificação social e as instituições que lhe reforçam os nexos submetem as mentalidades individuais, como salientaram os clássicos da Economia Política. Ou, como observou o próprio Celso Furtado, a minoria que se apropria do excedente leva a uma situação de dominação cultural que faz com que essa minoria legitime o sistema político ideologicamente[1]. Contra isso, John Stuart Mill e Alfred Marshall já assinalavam a educação poderia garantir melhores condições de concorrência no mercado de trabalho.

Todavia, de Marshall a Friedman e Mincer, aspectos como aptidões pessoais inatas, histórico familiar, estrutura social e sorte são fatores determinantes da distribuição de renda pessoal, manifestos em instituições externas ao indivíduo. Ora, é prioritário atenuar as desigualdades destas condições que restringem o escopo de suas decisões e perpetuam as desvantagens na economia de mercado. Todavia, a educação de qualidade não é uma força abstrata. É necessário entendê-la como parte orgânica do contexto social. Os retornos ao investimento em educação (pública e privada) são condicionados pela estrutura familiar e pelo perfil ocupacional da sociedade, o qual depende da estrutura produtiva e pela forma de inserção da economia no comércio internacional. Parafraseando um dito comum ao setor conservador: não há bala de prata na questão do desenvolvimento.

Se nos debruçarmos sobre a obra de Furtado, perceberemos que a educação jamais deixou de figurar dentre as prioridades do mesmo.  Por exemplo,  em ensaio de 1957, ao analisar a dinâmica da economia venezuelana, a partir de um diagnóstico estruturalista, Furtado apontara que o próximo passo para consolidar o desenvolvimento daquele país não poderia prescindir de investimento em educação básica, formação técnica para as indústrias e formação de pessoal para a pesquisa científica e tecnológica. E, justifica que tais investimentos – que deveriam ser realizados pelo Estado – geram efeitos persistentes importantes, a saber:

“Primeiro, contribuem diretamente para elevar o nível cultural e técnico da população, ou seja, para o aperfeiçoamento do patrimônio humano da nação. Ora, todo investimento feito nas pessoas possui um caráter de autoexpansão e de continuidade nas novas gerações. É um processo em cadeia e por natureza irreversível. Segundo, os investimentos desse tipo se concretizam em serviços de caráter permanente, isto é, geram um fluxo importante de salários que vão contribuir para a expansão do mercado interno”.[2]

A demanda pela adoção do Plano Nacional de Educação articulado a um plano de desenvolvimento remonta ao Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, lançado em 1932, em prol da construção de um sistema educacional democrático e inclusivo. No entanto, esta demanda viria a ser atendida apenas no Plano Trienal (1963), formulado e executado sob a liderança de Celso Furtado, que ocupou o cargo de Como Ministro do Planejamento do governo João Goulart. Na apresentação do primeiro Plano Nacional da Educação da nossa história, Furtado escreveu que “a muito custo chegamos (…) à compreensão de que a escola não é apenas o feliz coroamento ornamental de uma sociedade, mas a sua instituição básica, a mantenedora da sua cultura e a promotora de sua dinâmica de desenvolvimento”[3]. Em janeiro de 1964, ainda no governo Goulart, é lançada a “Comissão de Cultura Popular”[4], a qual institui o Programa Nacional de Alfabetização do Ministério da Educação e Cultura, mediante o uso do Sistema Paulo Freire, através do Ministério da Educação e Cultura, liderado por Darcy Ribeiro.

Mais tarde, Furtado deixaria clara a sua visão conectando educação, ciência e desenvolvimento. Ao comentar a emergência avassaladora da burguesia mercantil europeia, Furtado reconhece que foi “a conjunção dos dois processos – a sedução que nos espíritos da época exerce a descoberta de novos conhecimentos e a visão das atividades econômicas como um campo aberto à inovação – que definira o espírito da nova época”. E vai além: “Desde sua origem, a ciência moderna está ligada à ideia de acumulação de conhecimentos que permitem ao homem aumentar sua capacidade de ação”[5].

Como Ministro da Cultura entre 1986 e 1988, Furtado criou a Lei Sarney, sancionada no dia 2 de julho de 1986 que desamarrava autores e produtores culturais para dar o impulso que as atividades culturais nunca tiveram no país. Promoveu, ainda, a fusão da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) com a Fundação Nacional Pró-Memória, com vistas a dar maior dinamismo às políticas culturais voltadas para a preservação do patrimônio cultural.

Esta pequena amostra refuta qualquer omissão de Furtado quanto ao papel da educação. Dadas a premência e a dominância dos processos de acumulação no direcionamento das condições materiais de vida nos países periféricos, é verdade que a educação tem um papel menos explícito em sua abordagem teórica. Porém, não significa que esteja ausente.

Mesmo neste ponto, note-se que Furtado estava em linha com a produção do seu tempo. Especialmente no contexto do imediato pós-guerra, quando se consolida a perspectiva original do estruturalismo latino-americano, era urgente incrementar o excedente gerado e mantido nessas economias subdesenvolvidas, expandindo e diversificando a sua matriz produtiva, internalizando o seu centro dinâmico e absorvendo a mão de obra dispersa no mar de atraso.

O investimento em educação, capacitação, ciência e tecnologia, por sua vez, tornaria essa dinâmica robusta e sustentável, elevando essas economias a outros patamares de desenvolvimento. Da perspectiva estruturalista de Furtado, a solução individualizada de incremento de capital humano não daria conta sozinha de resolver os profundos problemas estruturais e sociais do subdesenvolvimento (ainda hoje existentes), que demandam planejamento nacional e estratégias adequadas para tal.

A obra e legado de Furtado, ademais, transcende seus escritos. Como homem público, deixou claro o papel valioso atribuído à democratização da educação, como instrumento da construção da cidadania popular, da transmissão da herança cultural nacional e como motor do desenvolvimento socioeconômico, forças estas que podem moderar os efeitos sociais danosos da acumulação desenfreada concentradora de renda e de riqueza.

São muitas as dimensões e os temas em que Furtado nos ofereceu contribuições ou inspirações importantes e não encontra rival à sua altura em matéria de desenvolvimento. Há muito ainda o que perscrutar sobre a sua obra e é sempre salutar reexaminar seu legado, em particular quando este é objeto de críticas.

Neste centenário do seu nascimento, fazemos esta singela homenagem a quem educou – e ainda educa – gerações inteiras de economistas sobre os dilemas que acometem os países presos na armadilha do subdesenvolvimento, convidando-as a transformar essa condição por meio do exercício da criatividade analítica, da ousadia teórica e da atuação prática.

Por:
André Roncaglia é Professor Adjunto do Departamento de Economia e do Mestrado em Economia e Desenvolvimento (da EPPEN-UNIFESP) e do PPGE-UFABC, e pesquisador associado do CEBRAP.

Fernanda Cardoso é Professora Adjunta do Bacharelado em Ciências e Humanidades, do Bacharelado em Ciências Econômicas e do Programa de Pós Graduação em Economia Política Mundial – UFABC.

Notas:
[1] Furtado, Celso. Economia do Desenvolvimento, Arquivos Celso Furtado, Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, 2008 [1975].

[2] Furtado, Celso. FURTADO, Celso. “O desenvolvimento recente da economia venezuelana” em Furtado, C. Ensaios sobre a Venezuela -Subdesenvolvimento com abundância de divisas, Editora Contraponto, Rio de Janeiro, 2008 [1957], p. 63-64.

[3] Furtado, Celso. O Plano Trienal e o Ministério do Planejamento, Arquivos Celso Furtado, volume 4, Editora Contraponto, 2011, p. 162.

[4] Via Decreto nº 53.465, de 21 de Janeiro de 1964.

[5] Furtado, Celso. Criatividade e dependência na civilização industrial, Companhia das Letras, [1978] 2008, p. 192-193.

*Texto originalmente publicado no portal Disparada.

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