A Crise do Coronavírus e a atuação do Banco Central

Por Luiz Fernando de Paula e Mateus Coelho Ferreira

A Crise do Coronavírus (Covid-19) vem se tornando um fato inédito na história econômica mundial, em especial, por ser uma combinação de uma crise sanitária e econômica, que em função da adoção do método de distanciamento social ou “lockdown horizontal”, em que ocorre um fechamento parcial ou total de vários setores da economia, envolve tanto uma dimensão de oferta quando de demanda. Do lado da oferta, inúmeras empresas, bem como trabalhadores informais e  autônomos, são impossibilitados de trabalharem oferecendo seus bens e serviços, paralisando ou diminuindo o número de horas trabalhadas. Do lado da demanda, ocorre uma postergação de consumo em meio à incerteza e as restrições de movimentação de pessoas. Consequentemente, o resultado é um duplo choque de oferta e de demanda, algo que só ocorre em situações extremadas de guerra.

Partindo deste cenário desafiador, os países desenvolvidos passaram a adotar diversas medidas de estímulo à economia em vista de manter a solvência das empresas, a renda dos mais vulneráveis e a manutenção dos empregos formais, buscando impedir uma queda mais acentuada na demanda agregada. Como exemplo notório, os EUA anunciaram um primeiro pacote de estímulo na ordem de 2 trilhões de dólares; já a Comunidade Europeia UE anunciou em 30 de abril que vai criar um fundo de 100 bilhões de euros para evitar desemprego na região. Evidentemente, esse tipo de resposta acaba resultando em um aumento expressivo do endividamento público.

No entanto, no Brasil, por causa da visão da equipe econômica, as propostas de combate à crise foram inicialmente vocalizadas para continuar no caminho da agenda de privatizações, do ajuste fiscal e das reformas estruturais. No início da crise, o ministro da Economia Paulo Guedes, um conhecido “Chicago Boy”, sustentava no início da pandemia que o país iria “decolar” para um crescimento de 2,5% até o final do ano (a despeito desse cenário recessivo global), e caso fosse necessário uma ajuda para a área de saúde, apenas um valor de 5 bilhões de reais poderia ser o suficiente para “aniquilar” o vírus  (UOL, “Com R$ 5 bi de reais a gente aniquila o vírus, diz Paulo Guedes”. 13/03/2020).

Entretanto, com a percepção clara do agravamento da situação no restante do mundo e da ação nacional conjunta  dos governadores e prefeitos em favor das medidas de contenção, a realidade acabou se impondo: a política de redução do papel do Estado teve que ser abandonada, ao menos de forma temporária, para dar lugar a uma expansão significativa do déficit primário e da dívida pública[1]. Este fato se deve tanto pela perda natural de arrecadação tributária (positivamente correlacionada com atividade econômica e amplificada com a queda dos preços do petróleo), quanto na ampliação de novos gastos de combate aos efeitos da crise econômica, entre os quais: criação de uma renda básica emergencial de R$ 600,00 reais por três meses trabalhadores do setor informal; um compartilhamento do custo da folha salarial das empresas, no qual é possível manter  o vínculo empregatício ao reduzir a jornada ou suspender temporariamente o contrato de trabalho com a contrapartida do governo em garantir parte dos salários com recursos do seguro desemprego; e, por fim, um auxílio amplo para recomposição do caixa de estados e municípios.

No caso do mercado de crédito, houve um consenso também que seria necessário oferecer linhas para manter o capital de giro das empresas e promover um relaxamento da rolagem das suas obrigações financeiras. Neste contexto, o Banco Central do Brasil (BCB), na figura do seu presidente Roberto Campos Neto, já em março anunciou um grande rol de medidas econômicas com objetivo de manter a estabilidade financeira e o bom funcionamento do sistema financeiro nacional[2]. Nas suas palavras “O Banco Central anunciou várias medidas para assegurar bom nível de liquidez para o SFN e para fazer fluir o canal de crédito. A ideia é que os bancos tenham recursos prontamente disponíveis em volume suficiente para emprestar e para refinanciar dívidas das pessoas e empresas mais afetadas pela crise. ”

Dentre essas medidas que podemos destacar para atingir esse objetivo estão: 1) a redução do nível de depósitos compulsórios sobre recursos a prazo de 25% para 17%;  2) diminuição dos requerimentos de liquidez de curto prazo (LCR) e do Adicional de Conservação de Capital Principal dos bancos;  3) uso de empréstimos com lastro com letras financeiras garantidas por operação de crédito (potencial de liberar R$ 670 bilhões de liquidez); 4) recompra de letras financeiras que podem ser deduzidas do depósito compulsório sobre recursos a prazo; 5) dispensa de provisionamento para renegociação de operações de crédito; 6) reclassificação dos níveis de risco das operações  de crédito entre 1 de março de 30 de setembro  aos níveis de fevereiro de 2020, antes do início da crise; 7) Criação do Depósito a Prazo com Garantias Especiais (DPGE), permitindo que instituições financeiras captarem depósitos garantidos pelo FGC (Fundo Garantidor de Crédito), ampliando de $20 milhões para R$40 milhões de reais por titular. Em suma, segundo o BCB (2020) “As medidas têm o potencial de ampliar a oferta de crédito em R$1.197 bi, ou 16,4% do PIB”. A rigor parece ser um valor bastante expressivo.

De fato, este conjunto inicial era algo esperado de acordo com a visão teórica da equipe econômica, ou seja, que bastasse apenas aumentar o nível das reservas bancárias, controlando o “multiplicador bancário”, para que imediatamente a oferta de crédito fosse retomada no mercado para a tendência anterior. Na prática, essas medidas, ainda que contribuam para aliviar as restrições de liquidez do setor bancário, têm se revelado claramente insuficientes, visto que muitas empresas estavam com dificuldade em acessar as linhas de crédito tradicionais ou mesmo não queriam contraí-las porque os juros até tinham aumentado no período (“Empresários relatam juros mais altos e restrições em financiamento com a crise”, Estado de S.Paulo, 05/04/2020).

O que vem acontecendo é o contrário do que era previsto: em cenário de incerteza quanto ao futuro, os bancos vêm adotando uma postura mais “conservadora”, com maior racionamento de crédito que favorece os clientes de menor risco, isto é, as grandes empresas. Logo, essa situação demonstrou que a concessão de crédito desejada não dependeria apenas do limite ao aumento das reservas bancárias disponíveis, facilitadas pela ação do BC[3]. Ademais, o próprio BCB afirmou que o sistema já se encontrava em uma posição confortável em termos de liquidez e solidez financeira, de acordo os requerimentos de Basileia. Na realidade, essa situação defensiva se deve ao comportamento pró-cíclico do sistema bancário durante o ciclo econômico, no qual a oferta de crédito depende principalmente das suas expectativas de lucratividade futuras e da percepção de risco da carteira de seus clientes e da maior ou menor demanda por crédito por parte dos agentes não-financeiros[4] (estando relacionado  com a decisão de estar disposto a gastar mais ou menos). Neste sentido, o cenário claramente aponta para um aumento da inadimplência no curto prazo, em face da incerteza sobre qual seria a extensão da quarentena imposta no país que colapsa a capacidade das empresas auferirem renda, gerando um problema de fragilidade financeira de acordo com a abordagem de fluxo de caixa à la Minsky.

Portanto, houve uma forte reação para que o governo junto aos bancos públicos como a Caixa e o BCB tomassem medidas mais assertivas para garantir o acesso ao crédito na “ponta”, principalmente, com relação às pequenas e médias empresas. Neste sentido, junto ao Tesouro, as instituições financeiras e o BNDES idealizaram uma segunda proposta, considerada mais ousada, e agora com participação de garantia com recursos públicos: um programa de financiamento de folha de pagamento de até dois salários mínimos por dois meses na ordem de R$ 40 bilhões, a taxa Selic de 3,7% a.a., em  que o Tesouro entraria com 85% dos recursos e os bancos privados com os 15% restantes. Essa nova medida parece ser mais alinhada ao objetivo de conseguir efetivamente aliviar o risco de crédito percebido pelos bancos. Porém, dado o teto do financiamento estabelecido, do período de extensão do contrato, da contrapartida de manutenção de empregos e do ambiente de incerteza decorrente da própria crise da pandemia, pode ser que esta medida tenha efeitos limitados. Dados preliminares já apontam que a demanda por essa linha de crédito subsidiada pelo Tesouro chegou apenas a 35% da oferta de recursos disponibilizados (R$ 30 bilhões) no mês de abril, dada a dificuldade das empresas de menor porte de se comprometer a não demitir em um cenário tão incerto, além da dívida tributária ser uma barreira ao acesso ao financiamento de algumas (“Procura por linha para folha de pagamento chega só a 35% da oferta”, Valor Econômico, 29/4/2020).

Outro ponto importante ressaltado para melhorar o acesso ao crédito e estabilidade financeira, em um segundo momento, é permitir que o Banco Central passe a atuar na curva “longa” de juros, dado a dificuldade da taxa de juros de curto prazo afetar as taxas mais longas em situação de preferência pela liquidez extremada dos agentes econômicos, induzido pela maior percepção de incerteza a partir da pandemia do coronavírus. De fato, esta fuga para liquidez ou para a moeda estrangeira (“fuga para segurança”), ocasiona uma forte elevação das taxas de juros de longo prazo dos títulos públicos e privados que se se descolam totalmente da taxa de juros de curto prazo, fixada pelo BCB, num movimento conhecido como “aumento da inclinação da curva de juros”. Desta forma, foi incluída na PEC do “orçamento de guerra”, uma autorização para que o BCB possa comprar diretamente títulos privados das carteiras das instituições financeiras, como debêntures e letras financeiras e títulos de dívida pública, no mercado secundário, permitindo assim afetar a ponta longa da curva de rendimentos. O mecanismo usual é denominado de operação “twist” em que BCB compra títulos de longo prazo e vende simultaneamente o mesmo montante no curto prazo.

Essa ação pode ser combinada com a adoção do sistema de “depósitos voluntários remunerados”, no qual o BCB paga um piso de remuneração sobre as reservas bancárias excedentes com o objetivo de administrar a liquidez no mercado interbancário e manter a meta de juros definida pelo Conselho de Política Monetária (COPOM), como ocorre no Federal Reserve (Fed), algo que ficou para um projeto de lei complementar. Atualmente, o Banco Central do Brasil utiliza apenas depósitos compulsórios, taxa de redesconto e operações compromissadas como instrumentos de política monetária[5].  Com depósitos remunerados, o Banco Central pode expandir seu balanço, mas sem precisar retirar liquidez do sistema bancário. Essa medida alternativa, portanto, permitiria ao Banco Central reduzir os níveis de compulsórios a zero (um custo implícito no spread de juros), e ainda, diminuir gradativamente o uso de operações compromissadas, que correspondem perto de 1/3 da dívida pública bruta, em geral, com vencimentos no curtíssimo prazo.

Além disso, uma medida importante seria ampliar a efetividade da ação do Banco Central  seria incluir uma supressão de forma temporária do artigo da Constituição Federal que impede o BCB de comprar títulos do Tesouro no mercado primário, conforme tem sido defendido por vários economistas. Assim, o BCB poderia financiar diretamente com emissão de moeda os gastos do Tesouro, sem precisar indicar fontes de recursos, podendo assim ampliar o volume e a extensão das medidas necessárias para enfrentamento da crise do Covid-19 de forma mais rápida. Caso seja necessário, o Banco Central pode deixar a taxa nominal de juros cair a zero, e controlar a saída de recursos externos vendendo parte das reservas cambiais, ou mesmo, introduzindo controle de capitais. Ademais, o próprio BCB poderia no limite criar uma linha de crédito a taxa de juros Selic e depositar a demanda desejada de crédito na conta corrente das empresas, assumindo todo o risco de crédito neste período, sem precisar recorrer aos métodos tradicionais. Apesar de começar no setor real, a crise econômica não pode se tornar uma crise financeira (em caso de aumento generalizado da inadimplência), o que teria efeitos ainda mais devastadores.

Neste momento, dada à elevada ociosidade no uso dos fatores de produção (capital e trabalho), a probabilidade de ocorrer uma aceleração da inflação devido ao financiamento monetário do déficit público é muito pequena. Aliás a rejeição da equipe econômica a esse tipo de proposta se deve provavelmente ao argumento monetarista (e quase como um mantra) que “a inflação é sempre resultado de um fenômeno puramente monetário”. A crise financeira de 2008 com o Quantitative Easing (QE) e consequente aumento do balanço dos bancos centrais de forma sem precedentes na história, demonstraram que essa afirmação não corresponde à realidade dos fatos.

Portanto, o abandono de falsas premissas é necessário para que as medidas para salvar a vida das pessoas e os empregos sejam tomadas com efetividade no menor espaço de tempo. Em outras palavras, o Banco Central por ser o braço financeiro do governo, tem uma capacidade de atuação menos limitada que pode parecer à primeira vista. Mesmo diante do que foi exposto anteriormente, o cômputo geral ainda bastante tímido em relação ao que poderia ser feito, ainda que sua ação tenha que ser necessariamente complementada por uma política fiscal contracíclica e uma política de crédito mais ativa por parte dos bancos públicos.

*Luiz Fernando de Paula é professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador do Grupo de Estudos de Economia e Política do IESP/UERJ.

*Mateus Coelho Ferreira é pesquisador Associado do Finde e Doutorando em Economia- IE/UFRJ.


[1] O déficit primário projetado chega perto de R$ 600 bilhões enquanto que a dívida pública é estimada em ficar entre 85% e 90% do PIB. “IFI estima queda de 2,2% no PIB, chegando a 5,2% em cenário otimista”. Senado Federal, dia 13/04/2020.

[2] BCB – Banco Central do Brasil (2020) “Medidas de combate ao efeito da Covid-19”, disponível em  https://www.bcb.gov.br/acessoinformacao/medidasdecombate_covid19

[3] Na verdade, o sistema bancário cria  reservas bancárias quando concede crédito. Ver Mcley et al. “ Money creation in the modern economy”, Bank of England Quartely Bolletin Q1, 2014. 

[4]  Neste sentido, ver Borio, C. et al. (2001), “Procyclicality of the financial system and financial stability: issues and policy options”, BIS Working Paper n. 1;  Lowe (2002), ) “Credit risk measurement and procyclicality”, BIS Working Paper. n. 16;  e Paula, L.F. (2014). Sistema Financeiro, Bancos e Financiamento da Economia. Campus/Elsevier.

[5] Operações compromissadas são operações de venda (ou compra) de títulos públicos com compromisso de recompra (ou revenda) dos mesmos títulos em uma data futura

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