A Terceira Margem

O futuro pós COVID-19: o fim da aglomeração, a robotização e questões sociais

Credit: GETTY IMAGES

Por Danilo Spinola, pesquisador da United Nations University (UNU-MERIT)

Não estávamos preparados para uma pandemia. Nem a nível mundial, nacional ou local. No entanto, repentinamente alteramos de forma radical nossos modos de socialização e interação. Ademais, vemos os graves impactos imediatos da crise pandêmica na economia. Enquanto isso, nossas esperanças estão colocadas na pesquisa científica para a cura do vírus, em que emerge uma nova corrida tecnológica, com grande elevação do investimento em atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D)[1].

Nesse contexto, gostaria de compartilhar uma reflexão relacionando os problemas conjunturais da pandemia do COVID-19 com mudanças estruturais de longo prazo, as quais reorganizam as formas de socialização, interação humana e organização econômica. A ideia desse artigo não é pintar um cenário sci-fi futurista, mas destacar as mudanças institucionais que são afetadas por demandas reais da sociedade.

Vivemos em uma estrutura cuja lógica produtiva foi construída com base nos benefícios da aglomeração. Ao pensarmos em trabalho, temos a ideia de uma linha de produção. Nesta, como descreve Adam Smith, trabalhadores são dispostos em um mesmo espaço físico, estruturando a divisão do trabalho. Também nos vêm a mente o trabalho administrativo, em que funcionários são reunidos e interagem no ambiente comum do escritório. Há uma extensa literatura na área de economia de redes que destaca os benefícios econômicos da interação. Nos casos levantados impera o paradigma da aglomeração, em que a estrutura da divisão do trabalho e a maior interação pessoal entre trabalhadores leva a ganhos de escala e produtividade.

Em um sentido oposto à lógica acima destacada, observa-se a emergência da chamada quarta revolução industrial (ou indústria 4.0), como descrita por Klaus Schwab[2]. Esta traz consigo uma perspectiva distinta à lógica da aglomeração. Desenvolvendo-se desde a terceira revolução industrial, a partir das tecnologias de informação de comunicação (TICs), surge a robotização, com controles inteligentes e interconectividade, inserindo-se na chamada “internet das coisas”, ou seja, o uso de robôs integrados em espaços cyberfísicos, que permite avançar com o processo de automatização da estrutura produtiva. Resulta-se em ganhos de produtividade e maior controle da produção. Além disso, o aprofundamento no uso de tecnologias de informação e da teleconferência reduzem custos e facilitam a comunicação, mantendo certo grau de interatividade. Dessa forma, a conectividade permite a manutenção do aumento da produtividade, ao mesmo tempo em que reduz a necessidade da aproximação espacial entre as pessoas.

Como consequência da emergência do novo paradigma industrial, o avanço da automatização altera radicalmente a estrutura do trabalho. Robôs passam a exercer as funções de pessoas. O capital substitui o trabalho, sendo este realocado a outros setores da economia. O trabalhador aos poucos sai da fábrica e do escritório e volta a trabalhar em sua casa ou nas ruas, em atividades que não exigem elevado grau de aglomeração. Observa-se que os trabalhadores realocados pela automatização migram, em parte, ao setor de serviços, reinserindo-se na estrutura econômica em atividades com menor grau de formalização[3]. A rápida emergência da gig economy (Uber, Rappi, Air BNB) é um sintoma desse processo de reabsorção do trabalho automatizado. Cabe destacar que a realocação do trabalho aos serviços não é um problema em si, desde que não resulte em maior grau de informalidade e na migração a atividades de menor agregação de valor. Nesse contexto, emergem relevantes questões sociais, como a elevação da desigualdade entre salários, e o possível aumento da taxa natural de desemprego. O sistema passa a demandar estruturalmente menos trabalho.

O processo de automatização já vinha avançando em alta velocidade antes do início da crise do COVID-19, principalmente nos países desenvolvidos. A pandemia tem potencial para catalisar radicalmente esse processo[4]. É provável que estejamos observando a emergência de um novo paradigma tecnico-econômico, como destacaria Carlota Perez.[5] As instituições se readaptam a uma nova lógica de produção e socialização, a qual se faz necessária dada o atual contexto.

A crise do COVID-19 torna inviável a manutenção da lógica de aglomeração no curto prazo. Por estar nela inserida, a economia sofre de imediato grave contração como consequência de restrições que surgem tanto pelo lado da oferta (trabalhadores não podem ir ao trabalho), quanto pelo lado da demanda (contração da renda). Resulta-se em um cenário de alta incerteza, contraindo consumo, taxas de investimento e comércio internacional. Por enquanto, a crise deve persistir, visto o longo horizonte temporal de expectativas para alcançar total imunização ao vírus a partir da implementação de uma vacina[6], o que pressiona por soluções não apenas no curto-prazo.

Do ponto de vista das firmas, podemos partir da discussão teórica presente na tradição da economia da inovação e evolucionária, em que se destaca como o avanço do processo de inovação e geração de tecnologia segue necessidades e demandas sociais[7]. A direção do desenvolvimento de novos produtos e processos responde a problemas impostos pela sociedade. Traduzindo a teoria para o contexto atual, a questão central é o risco à saúde pública gerado pela aglomeração, a qual impede, durante a pandemia, que se mantenha parte das atividades produtivas. Surge um novo desafio, o desenvolvimento da segurança produtiva. As grandes empresas buscam nesse contexto elevar sua resiliência a crises, ajustando a estrutura de produção à impossibilidade de aglomerar trabalho. Assim, deve-se assegurar que, dado o precedente do COVID-19, a produção tenha condições de responder rapidamente, e seguir no mesmo nível de produtividade, a reduzidas taxas de aglomeração. A resposta natural a essa demanda reside no aceleramento do processo de automatização, aprofundando e catalisando o desenvolvimento da indústria 4.0, reduzindo os riscos à segurança produtiva. De forma direta, os riscos econômicos seriam mitigados pelo uso de robôs.

Assim, reforço que o avanço da robotização é uma resposta lógica ao problema gerado pelos riscos da aglomeração. A pandemia é um catalisador de um processo que já vem em marcha.

Nesse contexto, cabe reforçar os efeitos sociais de longo prazo trazidos pela automatização. Ao substituir trabalho por capital, a realocação eleva o grau de informalidade, causando uma mudança estrutural regressiva do ponto de vista do emprego. Isso resulta numa tendência de elevação na parcela da população sem acesso à renda do trabalho. No limite, a produção seria inteiramente automatizada, deslocando o trabalhador ao setor de serviços, e em suas maior parte à informalidade.

A visão mais extrema acima destacada é aquela dominada pelo lado da oferta. Por ser um economista com formação keynesiana, gostaria apenas de colocar algumas ponderações para discussão futura.

Primeiramente, sem renda não há gasto, e se os agentes não gastam, não há o porquê de se manter ou expandir o nível de produção. As decisões de produção e investimento se dão em um cenário de expectativa e incerteza sobre a lucratividade futura. Assim, um argumento possível seria o de que a automatização no limite pode levar à estagnação do sistema.

Segundo, é preciso debater o papel do Estado nesse contexto. Em meio à pandemia, exige-se, no curto prazo, uma política de proteção da demanda. É importante a intervenção pública contracíclica, focada na redução do desemprego e na manutenção da renda. A proteção a trabalhadores e a pequenas e médias empresas é fundamental para impedir o colapso do sistema. No longo-prazo, no entanto, os efeitos da automatização levam a alterações estruturais na renda e no emprego. Cabe, nesse sentido, recolocar e desenvolver a discussão do papel do Estado como garantidor de direitos. Propostas nesse contexto vão no sentido da proteção do consumo, por meio de medidas como a renda básica; ou da proteção do emprego, por meio da política de empregador em última instância. Assim, uma importante solução apresentada para a tendência ao declínio secular da renda do trabalho é a constitucionalização das transferências, como um direito básico da população.

Gostaria de chamar a atenção para outro papel central do Estado, em sua função como “Estado Empreendedor”[8]; ou seja, como financiador e desenvolvedor de progresso técnico – interferindo nas trajetórias e na velocidade de criação de tecnologia, além de promovendo a entrada de invenções no mercado. Observa-se no contexto atual o importante papel governamental na busca e no financiamento de soluções para o COVID-19. O papel do Estado na inovação permite avançar por temas que reajam a demandas de longo prazo. Há importantes avanços no sentido das inovações sociais, focadas nos problemas estruturais da população de baixa renda, além de missões orientadas para reduzir a resiliência do sistema econômico por meio do fortalecimento de sistemas nacionais de inovação. O papel de agente inovador do Estado é um fator a contrabalançar os efeitos sociais da nova revolução tecnológica, e argumento sua importância no papel de propor e financiar soluções para os efeitos sociais da automatização na realocação do trabalho.

Em resumo, este artigo se propõe a introduzir uma ampla discussão que se desenvolve a partir da análise de trajetórias tecnológicas, e dos efeitos das bruscas mudanças geradas pela atual conjuntura no longo prazo. Os riscos da aglomeração têm como resposta a aceleração do processo de automatização, o qual gera elevados impactos na estrutura econômica e no mercado de trabalho. Cabe debater as consequências desse processo, e discutir formas de mitigar os efeitos estruturais danosos para uma população que vai ser deslocada e reabsorvida, e assim desenvolver o papel do estado nesse processo.

Por fim, deve-se ponderar que há importantes discussões que se desdobram desse contexto. Um importante ponto é o da reestruturação do comércio internacional. Com a pandemia, os países voltam a se fechar em estratégias nacionalistas. Há um processo de retração e reconfiguração das cadeias globais de valor.[9] Coloco a pergunta de como o avanço da automatização pode interagir com o comércio internacional no contexto de riscos da aglomeração? Um segundo ponto para futura discussão deve considerar a especificidade dos impactos de tal processo na periferia do sistema econômico, em como reagem e se inserem os países em desenvolvimento. Um terceiro elemento se relaciona aos efeitos ambientais e de sustentabilidade desse processo, o que inclui discutir a base energética que o sustenta. Por fim, deixo a questão de como poderia um estado de bem-estar social aumentar a resiliência econômica e social no contexto em questão.


[1] Há mais de 70 projetos em atividade para encontrar a vacina do COVID-19, união européia apenas busca aplicar US$2bi em financiamento para pesquisa no COVID-19. Veja mais no artigo de Mariana Mazzucato de 27 de abril: https://www.project-syndicate.org/commentary/universal-free-covid19-vaccine-by-mariana-mazzucato-and-els-torreele-2020-04

[2] Schwab, K. A quarta revolução industrial. Currency, 2017.

[3] Um excelente artigo que trata do tema é o de Sabrina Korreck, The future of work: Embracing informality

[4] Fato que já pode ser observado no artigo de 28 de abril: https://www.dw.com/en/how-robots-contribute-to-easing-coronovirus-fallout/a-53267165

[5] Artigo “Technological revolutions and techno-economic paradigms publicado em 2010 no periódico acadêmico  Cambridge Journal of Economics.

[6] A vacina não deve vir até 2022, como destaca o The Guardian: https://www.theguardian.com/world/2020/apr/14/coronavirus-distancing-continue-until-2022-lockdown-pandemic

[7] Discussão cujo principal expoente é Christopher Freeman em seu artigo acadêmico: “The determinants of innovation: Market demand, technology, and the response to social problems” publicado no periódico Futures. 1978.

[8] Mais detalhes no livro “The Entrepreneurial State” de Mariana Mazzucato.

[9] Veja mais no artigo do World Economic Forum de 27 de abril: https://www.weforum.org/agenda/2020/04/covid-19-pandemic-disrupts-global-value-chains/