Entre recessões e baixo crescimento, economia brasileira está estagnada há quarenta anos

Por Ricardo Carlos Gaspar

Desde a recessão de 1981-3, quando o Brasil se rendeu a reviravolta no cenário internacional e iniciou seu penoso ciclo de crise de longa duração, a estagnação fincou sólidas raízes entre nós. Vivemos, desde então, um processo de sucateamento do Estado, de atraso tecnológico e desindustrialização. O ideário e a prática desenvolvimentistas, que nos legaram uma estrutura produtiva industrial moderna e diversificada, foram quase totalmente abandonados a partir da década de 1980. Com eles, os projetos de construção nacional ou estratégias de longo prazo, bem como qualquer debate acerca do que almejamos para o futuro do país nas suas diversas áreas, sumiram do radar. A única exceção, durante esses últimos quarenta anos de tantas transformações no mundo, foi o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado em 2007, com alguns resultados importantes, mas que foi desidratado poucos anos após seu lançamento, devido a problemas políticos e econômicos que comprometeram sua operacionalização. Contudo, muito pouco para contrarrestar a tendência geral apontada. 

Os custos dessa desconstrução são muito altos. A opção política da substituição da vertente desenvolvimentista pela gestão imediatista, neoliberal, de predominância financeira compromete gravemente o futuro do país e suas novas gerações. Sem projeto, sem reinserção internacional inteligente que preserve interesses nacionais, sem reconstrução do Estado (muito pelo contrário!), sem apoio consistente à ciência e à pesquisa e inovação tecnológicas, com a educação ladeira abaixo, o Brasil vai ficando para trás, comprometendo as futuras gerações. Observa-se o empobrecimento do país em todos os sentidos, sem resgate imaginável no curto e médio prazos.

Imediatamente antes da crise do coronavírus, visualizávamos, sem nenhuma pretensão profética, dois cenários possíveis nos próximos anos para a economia e a sociedade brasileira, a seguir sumariamente resenhados. O primeiro deles prevê a continuidade e o aprofundamento do retrocesso atual (atual aqui, leia-se, o primeiro ano do governo Bolsonaro). Nesse caso teríamos, sob um liberalismo de fachada, dilapidação do patrimônio público com o incremento das privatizações, desnacionalização (já em curso), aumento da desigualdade e da riqueza da “nova elite urbana”[1], uma simplificação tributária que melhora o custo Brasil sem resolver o tema da regressividade e da injustiça na distribuição da carga fiscal, entrada adicional de capital estrangeiro com as renovadas oportunidades de negócios – sobretudo no agro, nos serviços e no setor imobiliário, e no controle de empresas estatais – e de comando das riquezas minerais e energéticas. O mercado experimentaria surtos dinâmicos e crises periódicas, muitas delas associadas a nova condição de dependência do país (escassez de divisas, desequilíbrios no balanço de pagamentos, fuga de capitais, apostas especulativas de diversas naturezas). Os surtos positivos têm como base o fato de que nosso mercado interno, mesmo restrito em relação ao seu potencial, comporta segmentos capazes de desempenho favorável – como o ramo de alimentação e bebidas -, sem falar naqueles ligados ao agronegócio. Muito pouco, porém, em face dos requisitos necessários de competitividade internacional e da revolução tecnológica em curso.

A população, em sua maioria, é presa da doutrinação conservadora de massa, sobrevivendo precariamente dos circuitos de renda alternativos (inclusive ilegais), e simulacros de programas distributivos e caritativos. Ante quaisquer desvios, a resposta inevitável é o aumento da violência policial. Por sua vez, aprofunda-se o déficit de capital cultural entre a fração mais pobre e os segmentos de classe média alta e o “andar superior” da riqueza, pelo acesso desses últimos a condições residenciais, serviços educacionais, de lazer, de saúde, entre outros, dos quais o conjunto do povo está irremediavelmente apartado. Como resultado, a divisão do país alcança novos patamares. Espasmos de violência disruptiva eclodirão aqui e ali, mas é provável que as classes dominantes tenham capacidade reforçada de subjugá-los.

O outro cenário, que chamaríamos, bem, “nacional-democrático”, envolveria um conjunto de políticas e iniciativas já bastante debatidas, mas não menos urgentes, no campo tributário, produtivo, fiscal, agrário, urbano, ambiental, comportamental, entre outros. Contudo, estão longe de serem consensuais. Falta, nesse cardápio de mudanças, um projeto abrangente e corajoso de reforma do Estado (indispensável!) e de política desenvolvimentista, com a recuperação e renovação do parque fabril em primeiro plano. Além disso, aquelas propostas têm o defeito de circunscreverem-se ao espectro político dito progressista, com dificuldade para abranger, num amplo pacto social – se é que podemos conceber algo tão improvável -, segmentos mais conservadores, empresários industriais e novas camadas de empreendedores urbanos de diferentes faixas de renda, tocando negócios por conta própria ou nas chamadas startups. É uma agenda que um agrupamento político ou uma liderança de centro poderia encampar. Mas eles não existem nem dão sinais de aparição. E a esquerda encontra-se circunscrita por uma ação reativa, fragmentada, tolhida pela onda ideológica adversa e pela incapacidade de pensar estrategicamente. Tudo isso pode mudar com certa rapidez, pelas reviravoltas inesperadas que a história propicia. E pelo vigor de mobilizações populares. Porém, no momento em que essas linhas são escritas, não visualizamos forças transformadoras com criatividade e poder de aglutinação imprescindíveis para reverter o rumo das coisas.

Tudo isso vem sendo colocado em xeque com a pandemia em curso. Assunto para um próximo artigo. Mas a perspectiva geral, a nosso ver, infelizmente prevalece: o Brasil, enquanto povo e nação, torna-se extremamente vulnerável em face dos impactos inevitáveis da Indústria 4.0 no mundo. Talvez esse seja a maior dano no longo prazo. E o “homem medíocre” nietzschiano celebra seu melancólico triunfo…


[1] A “nova elite” foi caracterizada em um brilhante ensaio de Doreen Massey como composta pelos CEOs e o staff dirigente de grandes corporações, pelos escalões superiores e das novas tecnologias dos serviços produtivos ao capital, pelos lobistas e altos funcionários do Estado encarregados do obscuro trabalho de transferir riqueza pública ao setor privado, pelo capital imobiliário (e os grandes projetos de requalificação urbana sob sua iniciativa), e pelos segmentos encarregados de produzir as “narrativas” dominantes, a cultura dos novos tempos, os discursos hegemônicos, crescentemente incorporados ao senso comum. “It is the reassertion, in a remoulded form, of class power”. (MASSEY, D. World city. Cambridge, UK, Polity Press, 2007: 47-9).

Ricardo Carlos Gaspar é professor doutor do Departamento de Economia da FEA – PUC-SP, Coordenador do Curso de Pós-Graduação lato-sensu “Economia Urbana e Gestão Pública” (COGEAE – PUC-SP) e pesquisador do Observatório das Metrópoles-Núcleo SP.

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