Crise Sanitária, Desigualdade e Proteção Social

Por André Roncaglia, economista e professor da Unifesp.

A coronacrise chegou ao Brasil pelo andar de cima, contaminando o topo da distribuição de renda que, mesmo com o a taxa de câmbio próxima aos R$ 4, conseguia fazer a festa na Disney e na Europa. Inicialmente uma doença de rico, o vírus avança rumo às camadas menos protegidas da nossa sociedade. Nossa imensa desigualdade social oferecerá ao vírus uma aconchegante penúria material. Falta de saneamento básico e de informação, proximidade social inescapável, baixa imunidade na terceira idade e, sobretudo, elevada insegurança econômica. Com o inverno se aproximando, o vírus já vai fazendo a cama para muitos doentes mais pobres. A crise humanitária que se avizinha não é desprezível e requer medidas assertivas e maciças para impedir o pior.

Depois de hesitar bastante, o governo lançou um pacote de estado de calamidade com gastos de R$ 15 bilhões em um período de três meses. Os recursos se destinarão a auxílios a “populações desassistidas”, inclusive com transferências de R$ 200 mensais a empregados autônomos. Além disso, o governo prometeu medidas para socorrer as empresas aéreas e os micro e pequenos empresários, dois grupos fortemente afetados pela crise atual.

Ainda que vá na direção certa, o plano do governo presume a ocorrência de um cenário de crise com 3 meses de duração, o que parece reproduzir o mesmo otimismo inicial do Planalto quanto à gravidade da epidemia. Planejamento de crise deve tomar como referência o pior cenário possível. Nessa linha, Mônica De Bolle (18/03/2020 no Estadão) sugeriu um pacote inicial de R$ 310 bilhões, ou 4% do PIB, em 12 meses distribuídos em suplementação do Bolsa Família, um programa de renda básica para famílias pobres, R$ 50 bilhões para a área da saúde e R$ 30 bilhões para os setores mais afetados, crédito subsidiado do BNDES para micro, pequenas e médias empresas e para financiar projetos em infraestrutura (como suporte de longo prazo).

Concordamos que em um estado de calamidade, é melhor errar pelo excesso do que pela falta. Mas um tratamento pontual para esta crise deixará intocadas as causas estruturais de nossa fragilidade econômica, associadas à persistente insuficiência de demanda e à acelerada desindustrialização da economia brasileira. 

Parece ser consenso dentro do espectro político guiado pela racionalidade que não é hora de pensar em dívida pública nem equilíbrio do orçamento. Este temporário “esquecimento” das metas fiscais abre uma janela de oportunidade.  É preciso ir além do curto prazo, aproveitando a flexibilidade orçamentária que o momento oferece e destravar o investimento público em infraestrutura como suporte contracíclico para o curto prazo e de desenvolvimento para o longo prazo. Não se trata apenas de usar o BNDES para financiar o “PIB privado” no setor. Há milhares de obras paradas e outros equipamentos públicos já acabados em grave estado de manutenção e que requerem cerca de 2% do PIB (R$ 160 bilhões) para oferecer um “big push” ao setor, capaz de mobilizar toda a rede produtiva, com efeitos de transbordamentos sobre a demanda agregada. 

A crise sanitária expôs as crises econômica, social e institucional. Como o vírus que vitima aqueles com proteção imunológica mais debilitada, as crises também se abatem mais fortemente sobre as economias sem infraestrutura, por se tratar de um setor similar ao sistema endócrino no corpo humano: produz hormônios reguladores do nível de atividade e participa do sistema de proteção contra ameaças externas. 

Quando mercados financeiros se tornam disfuncionais, volatilidade é “morte” na certa e “infraestrutura é vida”, porque oferece proteção à loteria do mercado. É hora de sair da caixa e reconhecer a importância da infraestrutura como motor do dinamismo econômico de longo prazo e com efeitos redutores da desigualdade, esta tão receptiva ao coronavírus. Este setor é parte da riqueza coletiva que oferece proteção aos mais vulneráveis por ser altamente capilar em termos sociais. Do momento que acordamos ao nos deitarmos, a infraestrutura está presente em nossas vidas. Quando a economia para, a efetividade da quarentena depende da qualidade da infraestrutura. Ela já é tech. Só falta virar pop.

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